Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

'Kaputt', o livro das crueldades da guerra

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Publicado em 10/03/2022 às 13:44

Alterado em 10/03/2022 às 13:44

Álvaro Caldas JB

Neste momento assustador evoco um livro magistral para falar de uma guerra cruel e oportunista, com seu rastro de chamas e destruição. Vem-me à memória o Kaputt, de Curzio Malaparte, livro perturbador e fascinante. Tornou-se um clássico da literatura universal pelas imagens que se mantêm vivas e atuais, produzidas no mesmo território em que russos e ucranianos se enfrentaram na Segunda Guerra Mundial e se enfrentam hoje no século XXI. Há lirismo e tristeza em suas páginas, num cenário devastado em que a vida humana não tem valor.

Em julho de 1941, o jornalista e oficial italiano Curzio Malaparte seguiu para a Ucrânia como correspondente do jornal Corriere della Sera. Transitou entre as tropas germânicas e russas, cobriu batalhas, frequentou salões burgueses onde oficiais nazistas, diplomatas e altos funcionários se embebedavam juntos com colaboracionistas, na comemoração de suas vitórias. Passou por cidades e vilas arrasadas, presenciou a fome, o terror e a degradação da população.

Com tudo isso na alma e na mente, Malaparte escreveu um livro potente e comovedor, misto de reportagem e ficção, que nos leva aos horrores do nazismo na Segunda Guerra. Nas palavras da escritora canadense Margareth Atwood, o Kaputt trás a tona “manifestações de fanatismo ideológico, racismo e de ódio à vida. Valores distorcidos, mascarados de pureza espiritual nos seus aspectos mais íntimos e vergonhosos.”

Chegamos a tanto e estamos de novo na mesma região da Europa praticando as mesmas atrocidades, numa disputa por espaço e poder econômico. Não se trata de uma guerra entre russos e ucranianos, mas de um confronto maior entre a Grande Rússia e a aliança da Otan com os EUA. Guerra insana reiniciada por Putin, o todo poderoso Czar russo, apresentado pela mídia como magnata, testa de ferro de poços de petróleo e clubes de futebol.

Taxado ora de nazista ora de um ex-comunista, formado pela KGB e contaminado pelas ideias de Marx e Lênin. Nazista e comunista são palavras vazias usadas para desqualificar, ninguém mais se preocupa em saber o que os termos significam. Estão convictos de que ofendem, e isto basta. Putin já disse que não aceitará ter sua vizinha Ucrânia transformada pela Otan numa potência nuclear.

Busquei na estante o livro de meu velho conhecido Curzio, de quem me aproximei nos bancos da faculdade. Malaparte é um tipo estranho, para não dizer excêntrico. Nasceu na Toscana, tinha uma casa na ilha de Capri, foi oficial do Exército de Mussolini. Seu biógrafo o definiu como um “anarquista de direita, ou anarco-fascista”. Podia ser qualquer coisa, menos um homem de esquerda.

Acreditei que relendo o seu livro poderia compreender o caos que se desenrola no leste europeu. Difícil, o mundo é outro. As primeiras reações externas revelam que houve um acentuado acirramento na confusão ideológica que divide as hostes da esquerda. Análises e diatribes proliferam nas redes, alimentadas pela volumosa e desproporcional cobertura das mídias internacional e local. Jornais e Tvs ampliam e distorcem os fatos.

Levanto da cama com a impressão de que levas de refugiados ucranianos estão acampados diante de minha janela, que abro com temor depois de ler as manchetes. Numa delas, mísseis russos atingem a maior usina nuclear na Ucrânia. O que ocorreu foi uma ocupação, depois se viu.

Vítima da guerra, a realidade brasileira praticamente sumiu. Seus principais temas foram relegados. Números da Covid 19, o uso de máscaras, nossas angústias e misérias, o desemprego, a disparada da inflação, as lambanças de Bolsonaro, as andanças de Lula, tudo evaporou. Editores estão convencidos de que leitores não querem saber o que se passa. Há quanto tempo não vemos na primeira página uma manchete que fale de um problema real do país?

Tudo indica estamos em Kiev, perdemos a identidade, viramos ucranianos. O que nos importa saber que a badalada primeira-dama Olena Zelenska ofereceu um coquetel às amigas em seu palacete? O noticiário não nos dá escolha, basicamente concentrado nas ridículas fofocas do reality show da Globo e em irrelevâncias da guerra russo-ucraniana. A cobertura tornou-se cansativamente alarmista, provinciana e tendenciosa.

Naturalmente tendenciosa, porque esse é o padrão normal, faz parte da rotineira visão manifestada pelos veículos. Seguindo os ecos da guerra fria, divide o planeta numa parte ocidental, cristâ, e democrática, agora com a cooptação da Ucrânia. E a banda oriental, formada por países comunistas, ateus e ditatoriais, onde se encontra a Rússia, agora se reaproximando da “ditadura” chinesa, Por seu petróleo, a Venezuela transita de lado.

No Kaputt sem tergiversações, há o desfile de um verdadeiro museu de horrores. Em sintonia com seu trabalho de repórter, dotado de paixão pela informação e pela aventura, Malaparte é o fio condutor de suas lembranças. Testemunha de escombros e destroços, “com nuvens de moscas gordas e preguiçosas, de asas douradas, zunindo sobre cadáveres e ruínas”. Seguiu os tanques através da Polônia, Romênia, Finlândia, Alemanha, a antiga Iugoslávia, Rússia e Ucrânia.

A palavra Kaputt nasceu no ambiente militar alemão. Era usada na Europa de Hitler como sinônimo de “acabado”, “aniquilado”, “morto”, “destroçado”. É o que conta a professora Lucia Wataghin, mestre em Língua e Literatura Italiana pela USP, na pesquisa que fez para a apresentação do livro. Graças a ela pude fazer esta coluna. A atmosfera carregada de atrocidades, sangue e morte acompanha passo a passo o leitor. Diferente do que ocorre hoje nas ruas das cidades ucranianas invadidas pelos russos.

*Jornalista e escritor

 

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