Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Antes que o céu caia e a turba saia

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Publicado em 09/12/2021 às 17:52

Alterado em 09/12/2021 às 17:55

Álvaro Caldas JB

Pouco tempo e pouca coisa restam para terminar esse 2021, pleno de desditas, dores e desilusões. Um ano em que andamos para trás, com o rosto coberto por máscaras. O tempo todo tivemos dificuldades para respirar e conviver. Amigos e amigas sumiram, e muitos deles subiram mesmo, desapareceram para sempre, silenciosamente. Um ano marcado por cenas de horror, pela disseminação de um vírus mortal que teve sua circulação estimulada inescrupulosamente por agentes do governo, ditos negativistas e genocidas, capitaneados pelo número 1.

Imergimos numa guerra particular, num tempo de destruição, que me levam a fazer associações com outras guerras, com outros modelos de fascismo. Com o auxílio dos fones da memória, ouço os estrondos e vejo os clarões em Guernica e Hiroshima, ao final da 2ª Guerra. Um ano sacudido por violentas chacinas em comunidades de população pobre e negra. O morticínio de favelados virou uma política de Estado.

Repórteres de polícia descreviam antigamente essas cenas como banhos de sangue. Este ano, por 59 vezes, policiais militares invadiram casas, jogaram bombas e mataram 246 moradores. Impossível ouvir os lamentos e os gritos das pessoas que tentam se agarrar à vida com unhas e dentes. Num ambiente de combate permanente, alguns andam armados, prontos para a guerra. Corpos são amontoados, manchas de sangue grudam nas janelas e paredes. Parem de nos matar, eis o grito dos sobreviventes, que se transformou num movimento de luta pela vida.

Um ano em que a estrutura do Estado encarregada de cuidar da saúde, da educação, habitação e cultura foi desmontada. Suas engrenagens dilapidadas, suas verbas desviadas e roubadas. Cresceram os crimes de milicianos, que agem com a cobertura da família evangélica. Um ano em que o desemprego desceu para as ruas, a céu aberto. Escancarou a fome de mulheres e crianças largadas nas calçadas, arrastando-se para catar restos de comida no lixo.

Mas há outros submundos. Localizados em escritórios e salas luxuosas nos andares altos de edifícios modernos. Num ambiente refrigerado, homens de paletó e gravata reúnem-se para comemorar o sucesso de suas operações financeiras, graças às boas ligações que possuem com o Banco Central. Com seus pares, acertam a distribuição de verbas do orçamento secreto em seus currais eleitorais. E caminham pela sala preocupados com a indefinição do nome da terceira via, o candidato em que jogarão tudo para ganhar as eleições e manter o poder. Este que está aí se queimou, não serve mais.

Cenas como estas de um capitalismo destrutivo, em que sintomas extremados do fascismo penetram as bordas do sistema, vão se corporificando de forma silenciosa diante de nossos olhos. Elas são visíveis, suas articulações estão expostas, talvez somente uma revolução possa confrontá-la. A arte, seja a pintura, o cinema ou a literatura, com sua transcendência, pode capturar a dimensão da tragédia que se desenha. 

Um filme de ficção ou documentário baseado neste roteiro terá imagens devastadoras. A arte dispõe de meios prodigiosos para eternizar uma tragédia. Basta pensar em Guernica e Picasso, de como o gênio escancarou na tela o horror do bombardeio nazista que destruiu a cidade espanhola.

Dois acontecimentos me impactaram para a definição do tema desta coluna de final de ano. Aparentemente díspares, mas ligados por teias invisíveis. O filme Ataque dos cães, de Jane Campion, drama passado nos confins de uma fazenda em Montana, EUA, construído com belas paisagens e extrema delicadeza. Um falso faroeste povoado de seres solitários, ambíguos e violentos.

E o novo espetáculo da encenadora brasileira, Christiane Jatahy, Antes que o sol caia, que estreou em Zurique, na Suiça. Segunda parte de sua trilogia do horror, ele mistura "Macbeth", o clássico de Shakespeare, com a voz do xamã Davi Kopenawa, registrada no livro "A Queda do Céu" pelo antropólogo francês Bruce Albert.

O tirano Macbeth se torna o centro do espetáculo. O ambiente é moderno. Tudo se passa num salão luxuoso, de decoração aristocrática, onde um grupo de homens de terno bebe champanhe e comemora o sucesso de alguma operação financeira bilionária.

Segundo a diretora em entrevista à Folha, a camarilha de homens ébrios de poder é uma imagem de um capitalismo destrutivo, um "banquete sem fim que esses homens vivem, querendo devorar tudo o que têm à volta. Não é uma peça sobre um fatalismo irrevogável. É uma peça sobre o horror, mas também sobre a urgência de acabar com esse horror.”

Christiane expõe as entranhas de uma tragédia, antevista em tons planetários pelo consagrado economista francês Thomas Piketty, que conquistou um lugar na história com seus estudos e livros sobre as desigualdades do capitalismo no século 21. Compõem uma mistura explosiva. Picketty acredita que estamos numa situação não muito diferente daquela que levou à Revolução Francesa: há uma fuga para a dívida pública porque não se consegue fazer com que as classes privilegiadas usem suas fortunas para pagar sua parte.

“Quando falo que o sistema vai explodir na nossa cara estou pensando no Norte e no Sul”, disse ele em entrevista ao El País. “É um sistema insustentável. A questão é se o questionamento deste sistema será feito de forma desordenada ou apaziguada. Sou um intelectual, escolhi escrever livros, e não ser um guerrilheiro”.

Até o réveillon há motivos para descrer e não descrer. O filme da premiada diretora neozelandesa Jane Campion, com seus conflitos e belas imagens, pode contribuir para uma reflexão.

*Jornalista e escritor

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