Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Racismo branco enxerga piolho na cabeça dos negros

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Publicado em 25/11/2021 às 18:16

Alterado em 25/11/2021 às 18:16

Álvaro Caldas JB

Conheço Ismael há meses, desde a metade da pandemia. Duas ou três vezes por semana nos encontramos quase que pontualmente na hora do almoço. De capacete e máscara, ele estaciona, desce da moto, abre a espaçosa bolsa vermelha e me entrega a mercadoria ainda quente. Pago no cartão e dou uma gorjeta por fora. Ao longo deste tempo, conversamos amenidades: a alternância da chuva e do sol, a vida de sambistas que ele gosta, os temperos da cozinha. Uma das coisas que ele havia me dito é que vem de uma família de músicos, seu tio-avô fora um sambista famoso.

Tratava-o com essa cordial invisibilidade com que alguns brancos tratam os pretos, de forma educada, mas sem intimidade. A primeira vez que tivemos um papo cabeça foi no sábado, 20 de novembro, dia da Consciência Negra. Ismael é um jovem negro sólido, uns 22/23 anos, cabelo pixaim raspado com máquina zero dos lados, uma trança caindo atrás da nuca, dentes alvos. Mais para o cantor e compositor Luiz Melodia do que para Zeca Pagodinho. Uma vez me mostrou ser capaz de emitir um turbilhão de notas de uma só vez.

Neste sábado, ensaiei umas perguntas para lhe fazer. Você tem registro civil? Claro, e mostrou a carteirinha do Detran. Carteira de trabalho assinada? Isso não existe mais, nem os brancos conseguem. Estuda? Faço Direito, mas tranquei. Quero ser como o Luiz Gama, aquele advogado negro abolicionista, que libertou os cativos. Tem filhos? Tenho dois. Abriu a carteira e mostrou a foto dos pretinhos gêmeos. Então, por que você é invisível? Tá de sacanagem, seu Álvaro?, disse, batendo no peito com orgulho.
O racismo existe?, eu quis saber. Se é para falar com inteira liberdade, tenho medo das autoridades. Se racismo é ser sacaneado todo o tempo todos os dias, claro que existe. Desde o jardim da infância. Se chego numa loja já me olham como se fosse pegar alguma coisa. Não adianta esse negócio que os brancos dizem, eles vão negar, porque não sentem. Racismo para eles é só quando negro apanha, leva porrada, leva tiro.

O racismo é silencioso, está no olhar. Como uma doença invisível e maligna praticada pelos brancos. É um vírus que se repete. Basta prestar atenção na maneira como vocês nos olham, retorna Ismael. É como se tivéssemos a cabeça cheia de piolhos. Ou lagartos. O negro sente o olhar excludente e rancoroso do cara racista. Nem precisa ter a tal da consciência negra.

É dolorosa a vivência do jovem negro e pobre, ainda mais numa sociedade em que o racismo é mascarado, não é assumido. Os que tem a pele de outra cor que não a dominante social e economicamente, são transformados em seres invisíveis, exterminados nas ruas e em suas comunidades. O aparato legal das instituições do Estado os coloca à margem, eles não contam, não ascendem, devem servir e obedecer.

Uma grande parte dos brancos discrimina veladamente a maioria de negros e pardos, como se não percebessem. Também fiz isso, no exercício do secular e velado racismo do brasileiro, que exerce e pratica com soberba e violência a discriminação e a desigualdade. Comportamento que de tão entranhado naturalizou-se, virou a norma.

Fechando a bolsa e passando a perna por cima do selim para montar a moto, o letrista e entregador de refeições Ismael avisou que no nosso próximo encontro, na sequência da semana da Consciência Preta, vai querer falar sobre Luiz Gama, o advogado que resistiu à violência racial no século 19. Sua obra foi apagada. Viu o nome dele num filme e já leu tudo que encontrou no Google.

Ainda deu tempo de perguntar se queria ser músico. Quando criança só pensava em compor e cantar, para honrar esse nome que me deram. Meu espelho era o Chico César, um cara sem medo, com aquela cabeleira espinhosa e encaracolada. Em casa, meu avô enaltecia a bravura do Zumbi dos Palmares e do marujo negro João Cândido, que chefiou a Revolta contra a Chibata. Seus heróis, ao lado do irmão Ismael, meu tio-avô, inventor do samba, frequentador da Lapa boêmia. Um homem elegante, que usava sapatos brancos de bico fino.

O Ismael Silva, autor daquele samba Antonico, que toca surdo, cuíca e tamborim. O senhor, que é jornalista, certamente que já o viu num boteco da Lapa, tomando umas com o Dácio Malandro. Meu nome é Ismael por causa dele, mas pode me chamar de Antonico mesmo.

Antonico enfia o pé no pedal, a máquina ronca e já dobrou a esquina. Daí a dois dias, junto com a confirmação da entrega do almoço, veio uma mensagem. Desculpa incomodar, seu Álvaro. Comecei a escrever uma história depois das confissões do dia da Consciência. Sonhei que tinha mergulhado em algo tenebroso, talvez um remoto acontecimento de minhas vivências.

“Vaguei pelas ruas quando meu irmão foi assassinado pela PM. Um tirambaço abriu um buraco na testa. Ao saber do acontecido, minha mãe se queimou toda na cozinha, quando requentava o feijão na panela de barro. Minha outra irmã perguntou por que vocês não se matam logo de uma vez? Dei um murro na cara dela. Ela foi à lona e a parede tremeu. Do lado de fora começou uma gritaria, como se estivessem fazendo uma barricada para impedir a entrada dos guardas. Ao fundo, tocou no rádio uma melodia triste, ouvi o estalido da trava de segurança de um fuzil. Depois os corpos foram amontados no pátio. Ser negro e pobre é impactante. Vem desde os tempos dos navios negreiros.”

*Jornalista e escritor


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