Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

A economista Conceição Tavares cai nas redes dos jovens

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Publicado em 04/11/2021 às 13:56

Álvaro Caldas JB

Ela é uma economista engajada, professora de formação humanista, dotada de um estilo enérgico e veemente nas salas de aula, apaixonada pela música brasileira, cinéfila de carteirinha e torcedora do Vasco. Responsável pela formação de várias gerações de economistas que se tornaram figuras de projeção na vida pública do país, passou os últimos 60 anos circulando pelos meios acadêmicos e tribunas políticas, defendendo ideias desenvolvimentistas e denunciando injustiças sociais.

Aos 91 anos, feitos em abril, esta cientista rigorosa, de sólida formação intelectual, foi redescoberta pelas redes sociais, tornando-se repentinamente popular, sobretudo entre jovens, alcançando uma fama que não chegou a ter. Usuários descobriram e começaram a compartilhar trechos de suas entrevistas e aulas gravadas, especialmente as da disciplina de economia política, em que ela surge em cena com a ferocidade e a irreverência de seu humor, desancando os liberais e sua doutrina ,“uma verdadeira praga autoritária e selvagem”.

A portuguesa naturalizada brasileira Maria da Conceição Tavares, autora de livros e ensaios premiados, militante da causa democrática, criadora, junto com Simonsen, Delfim Netto e Reis Velloso, da pós-graduação em Economia no Brasil, de repente tornou-se uma estrela pop. Uma espécie de diva da Economia, capaz de traduzir para a linguagem das ruas, ao alcance de qualquer pessoa, os temas e as teorias do economês pernóstico usado pelos “entendidos” para encobrir a realidade.

Seus vídeos espalharam-se a uma velocidade surpreendente na rede Tik Tok, onde já alcançaram 250 mil visualizações em 24 horas. Sua entrevista ao programa Roda Viva, em 1995, com 200 mil visualizações no YouTube, é um dos vídeos mais acessados. Cercada pela bancada de jornalistas conduzida por Matinas Suzuki, Conceição Tavares roda a cadeira e fala sem parar, olhando firme para frente. Trata como alunos relapsos alguns dos entrevistadores, que repetem lugares-comuns em suas perguntas.

A certa altura, perde a paciência com Carlos Alberto Sardenberg: “Não vai discutir comigo a balança de pagamento, vai? Se olha, rapaz!” Em seguida, gira a cadeira e segue o baile. Perguntada sobre um badalado economista do mercado, afirma que “se você não se preocupa com justiça social, com quem paga a conta, você não é um economista sério. É um tecnocrata”. Travou sempre um embate vigoroso, quase físico às vezes, com opositores e economistas liberais.

Matemática e economista de vasta cultura, Conceição Tavares é considerada entre seus pares como a mais brilhante economista brasileira do século. Trabalhou na elaboração do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. No BNDE, fez um estudo matemático sobre a distribuição de renda no Brasil. Ficou chocada com o que descobriu: "Deparei-me com as estatísticas. Este país é uma desigualdade só (...) Compreendi então as dificuldades das tentativas de construção de uma democracia nos trópicos”.

Participou ativamente da feitura do Plano Cruzado, no governo Sarney, destinado a combater a hiperinflação da época com o congelamento de preços. No lançamento, ela se emocionou e chorou em entrevista diante das câmeras de televisão. Pela primeira vez, o telespectador viu uma economista, não uma moradora de uma casa que desabou, chorar em público.

Nas salas de aula da Unicamp, em Campinas, e da UFRJ, no Rio, onde tornou-se professora Emérita, Conceição Tavares transformava suas aulas numa grande atração, juntando alunos de outras turmas que corriam para vê-la em ação. Vendo hoje a cena nos vídeos, os jovens se espantam com sua liberdade e desenvoltura, a honestidade intelectual, os palavrões. O gestual teatral de uma mulher de cabelos curtos, falando com um acentuado sotaque português. Atrás de sua mesa, de pé, a professora andava de um lado para outro, com um cigarro entre os dedos.

Fugitiva da ditadura salazarista, acabou caindo nas malhas de outra ditadura. Nos anos 1970, durante o governo Geisel, depois de um exílio no Chile, a economista foi detida no aeroporto internacional do Rio de Janeiro e levada para as dependências do DOI-Codi, na Tijuca. Lá, esbravejou para um oficial que foi interrogá-la. “Eu sou uma professora. Eu sou uma professora. Estão me prendendo por isso?”

Em sua formação, sofreu forte influência de três pensadores brasileiros: Celso Furtado, Caio Prado Jr. e Ignácio Rangel. Foi Rangel que chamou sua atenção para as questões relacionadas ao capital financeiro. Um dia, ele lhe disse: “Conceição, a esquerda tem a mania de não estudar essa coisa de moeda e finanças, e isso dá muito mau resultado”. Ela se aplicou.

Em meio às moedas e finanças, nunca deixou de seguir sua paixão pelo neorrealismo italiano, o cinema lançado por Rosselini no pós-guerra, uma de suas grandes paixões. Emocionou-se com o Vittorio de Sica de O jardim dos Finzi Contini. De outro mestre, o roteirista e diretor Valerio Zurlini, admira em especial Dois Destinos e O Deserto dos Tártaros.

A economista Maria da Conceição Tavares viralizou no Twitter e chegou às novas gerações, que resgatam vídeos antigos de suas aulas e entrevistas; Aos 91 anos, ela ressurge com a aura de uma personalidade maior, que rompe com a aridez da economia. Está para esse mundo do teto de gastos e do déficit fiscal assim como a atriz Fernanda Montenegro, 90 anos feitos ano passado, está para o mundo das artes e do Teatro.

São duas grandes damas, duas bruxas, personalidades representativas do que pode dar certo num país subdesenvolvido, com uma desigualdade de renda brutal e uma realidade política vergonhosa, onde se misturam civilização e barbárie. As obras da economista são leitura obrigatória para estudantes, professores e pesquisadores da economia brasileira contemporânea.

*Jornalista e escritor

Fontes: Acervo CNPQ / Organizado por Hildete Pereira de Melo,

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