ENTRE REALIDADE E FICÇÃO
Cultura mobiliza auto em defesa de seu patrimônio
Publicado em 19/08/2021 às 13:17
Alterado em 20/08/2021 às 07:29
O carioca que trabalha no Centro conhece-o bem, passa por lá quase todos os dias, caminha entre seus pilotis contornando os jardins, está familiarizado com os azulejos e as janelas em fita que compõem sua fachada. Os demais brasileiros já ouviram falar dele, um imponente prédio modernista que ocupa um quarteirão entre as ruas Graça Aranha, da Imprensa e Araújo Porto Alegre. Atrás dele estão dois outros edifícios construídos na mesma época, final dos anos 1940, governo Vargas, também para sediar ministérios, da Fazenda e do Trabalho. Mas sem um pingo do seu chame, nada a ver com seu estilo elegante e desbravador, que se impõe.
Esquecido e abandonado, permanecia quietinho em seu canto passando por obras de restauração há sete anos, quando um tosco neoliberal, ministro da economia deste governo entreguista e manicomial, anuncia que vai levá-lo a leilão junto com outros dois mil imóveis. Entre os quais muitos considerados símbolos valiosos deste Rio de Janeiro, ex-capital federal. Já no dia em que tomou posse Bolsonaro extinguiu o ministério da Cultura e agora quer se livrar do seu símbolo. Precisa fazer caixa, as eleições se aproximam.
De um momento para outro o Palácio Gustavo Capanema, ex-sede do ministério da Educação e Cultura, virou notícia nacional e internacional. Foi redescoberto, saiu em toda mídia local, deu no NY Times, no Le Monde, no El Pais. Provocou uma intensa reação de indignação que se espalhou rapidamente, como há muito não se via. Assunto de conversas nas ruas, academias e consultórios. Barricadas foram erguidas. O pais finalmente despertou do torpor em que se encontra, ergueu-se e saiu das cordas em defesa de um Palácio, do que ele representa no imaginário dos brasileiros.
Gente de todo lado esbravejou. Eles não podem fazer o que querem, dizem pelas redes sociais. Arquitetos, professores, historiadores, artistas, todos protestaram. O arquiteto Lauro Cavalcanti disse que quando lhe disseram pensou que fosse piada. “É como se Roma resolvesse vender o Coliseu”. Filha de Lúcio Costa, um dos criadores da obra, a arquiteta Maria Elisa Costa exibiu um vídeo do pai dizendo que “nós não somos medíocres, não temos vocação para a mediocridade.”
Eles têm, e a manifestam agressivamente sem pudor. Guedes e sua equipe econômica pensam em inglês, ignoram a realidade do país em que se encontram, desprezam as necessidades de seu povo, desconhecem o valor simbólico de seu patrimônio cultural. Na linguagem em que se expressam, o economês, afirmam que o feirão de imóveis é a grande aposta para se desfazer rapidamente de “ativos estatais”. Ora catso, vão se lascar com os seus ativos, diria Stanislaw Ponte Preta em seu Febeapá, o Festival de Besteira que Assola o País.
Ocorre que o mais valioso destes “ativos” é um ícone da arquitetura moderna no Rio de Janeiro, o Palácio Gustavo Capanema. Lá, o visitante vai encontrar a presença da imaginação, dos traços, da inteligência e do talento de Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Afonso Reidy. A inspiração do arquiteto franco-suíço Le Corbusier. Azulejos de Portinari, jardim suspenso de Burle Marx e esculturas de Bruno Giorgi.
Um verdadeiro Museu a céu aberto, distribuído por um prédio de 16 andares, um cultuado símbolo do Rio, tanto quanto o estádio do Maracanã, na Tijuca, da mesma época, erguido para a Copa de 1950. Um espaço com presença garantida em minha memória de estudante, jornalista e morador da cidade. Estive lá inúmeras vezes, algumas delas vivendo momentos de emoção.
No início, atravessando os vãos livres do Palácio para chegar ao prédio do curso de Jornalismo, na Faculdade de Filosofia. Saindo de uma reunião na ABI, ali ao lado, sua antiga vizinha. No meio do caminho, dando um adeusinho a Machado de Assis, sentado em seu trono na entrada da Academia Brasileira de Letras. Ou simplesmente, no final de uma tarde, passando pela calçada para me dirigir ao Villarino, tradicional uisqueria no início da Graça Aranha.
Suas colunas e jardins serviam também de refúgio para estudantes que vinham em correria das passeatas que se dirigiam à Cinelândia, perseguidos pelas bombas e cavalaria da PM. Tempo curto para respirar, pois logo seriam expulsos pelas bombas de gás lacrimogêneo. Todo o entorno do MEC era altamente agradável e recheado de belezas. Pelo menos foi. Há tempos, desde o inicio da pandemia, não circulo pelo Centro. Noticias são desoladoras, lojas fechadas e miséria exposta nas ruas.
Em sua visita ao Brasil, em agosto de 1960, Sartre e Simone de Beauvoir foram conhecer o famoso Palácio Gustavo Capanema, tombado pelo Patrimônio Histórico, Debaixo dos pilotis, escondida entre os azulejos de Portinari, existiu uma pequena livraria pouco frequentada e conhecida. Certa manhã, em busca dos caminhos do existencialismo sartriano, folheei algumas capas e saí da livraria levando debaixo do braço O Fantasma de Stalin, de Jean Paul Sartre, editora Paz e Terra, indicado por meu amigo, hoje filósofo, Nelson Levy, que me acompanhava.
Nesta sexta-feira à tarde, dia 20, o Palácio Capanema será abraçado num auto de fé e luta para dizer aos medíocres que a cultura brasileira não está à venda.
*Jornalista e escritor