Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

O que andam sussurrando por aí

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Publicado em 18/06/2021 às 09:52

Alterado em 18/06/2021 às 09:52

Álvaro Caldas JB

“Só pra saber se está tudo bem. Nada demais” - sussurra a voz feminina do outro lado, depois que liguei assustado com a mensagem que acabara de receber no celular, pedindo que fizesse contato urgente. Para quem está fechado em casa há tanto tempo, urgência tornou-se uma palavra ameaçadora, quase sempre associada ao anúncio de mais uma morte. Vivemos um cotidiano tenso, que se estenderá por um tempo indefinido, submetidos aos desvios truculentos de um psicopata.

Já em outras terras, o retorno a uma vida normal começa a ocorrer gradativamente. São países da comunidade europeia, que seguiram as regras da ciência e do bom senso. Com mais da metade da população adulta vacinada, o Reino Unido prepara-se para suspender as restrições sanitárias e seus habitantes vão retornando a uma vida normal pós-pandemia. Para os brasileiros, esta volta é imprevisível. Não dispomos de instrumentos para calcular sua duração nem ainda de meios para afastar o inominável.

Depois do susto que me passou, seguido da mensagem de paz, minha inquieta amiga cria um novo alvoroço. Acaba de me enviar a notícia da queda do Congresso da UNE, com a prisão de quase mil estudantes. Mas acontece que essa é uma noticia velha! Não aconteceu ontem nem ano passado e muito menos em Marienbad, digo eu. Mas em 1968, há 53 anos, num sítio em Ibiúna, a 70 Km de São Paulo.
Simplesmente ela só quer me lembrar que estava entre as 200 meninas do movimento estudantil que saíram presas da grande aventura de Ibiúna. Ela uma jovem de 20 anos, junto com seu namorado, cada um deles em uma das facções que iriam disputar a presidência da entidade, a católica e a comunista.

Pulicada no site Documentos Revelados, a matéria faz um balanço atualizado do que não chegou a ser o 30º Congresso clandestino da UNE, transformado num verdadeiro happening político. Convocado para eleger o novo presidente, não teve tempo para começar. Um grande contingente policial, formado por agentes do DOPS e soldados da PM, cercou e invadiu o sítio de madrugada, no momento em que os delegados davam início aos trabalhos de credenciamento. O momento era de grande agitação politica no país, logo em seguida vieram as trevas com o AI-5.

Assustada, com cara de sono e enrolada num cobertor, lá está a minha amiga, na beleza de seus 20 anos, ao lado de centenas de outros jovens. Depois de uma noite fria e chuvosa, muitos estavam sujos de lama. Haviam dormido no chão, em barracas improvisadas. Postos numa longa e sinuosa fila foram escoltados pela tropa armada até um amplo galpão nas proximidades. Caminhavam sussurrando entre eles o que iriam falar no depoimento. Estacionados no galpão, ônibus, caminhões e kombis os aguardavam.

Ela se lembra desta cena com tristeza e ternura. Não houve pânico. Acreditavam que iriam se recuperar, retomar os contatos com as respectivas organizações e retornar à grande marcha. Quando a terra se aquietou e os ventos passaram, anos depois, estudou cinema. Tornou- se roteirista, e durante muito tempo trabalhou num roteiro para este filme. Queria fazer ficção, mas acabou sufocada pelo real. Desistiu.

Foram parar no DOPS de São Paulo, onde passaram por uma gigantesca operação de fichamento. A boa nova é que o Site publica as fichas individuais, com uma galeria de fotos das estudantes presas. O fotógrafo policial clicou uma a uma, com um número dependurado no pescoço, sobre o peito. São meninas bonitas ao natural, parte de uma juventude que não aceitou viver sem liberdade, sob uma ditadura. E se rebelou.

“Eles só queriam mudar o mundo”, como está contado no livro que os jornalistas Regina Zappa e Ernesto Soto escreveram sobre a geração de 1968. Pude vê-las, a minha amiga e suas companheiras, na comovente galeria de fotos. Algumas de óculos escuros, outras de cabelo preso ou trancinhas, as meninas de Ibiúna. A prisioneira-roteirista olha para a câmera com serenidade. Não pisca, não ri nem faz cara feia. Posa para o devido registro da História, marcada com o número de identificação 1475.

Entramos numa encruzilhada e são muitos os riscos que corremos. Em reconhecimento à memória de lutas dessa geração, devemos declarar total repúdio a uma nova forma de ditadura, agora com os grotescos símbolos mussolinianos das botas e das motos. Pelas redes sociais podemos sentir a reverberação das pessoas e grupos sussurrando e espalhando mensagens de convocação para um grande ato de protesto, um Fora Bolsonaro em todo país, sábado próximo, dia 19.

Acintosamente hostil à democracia, Bolsonaro abraçou um modelo populista ditatorial com seus grupos de milicianos armados e parcela dos evangélicos. Sua estratégia é manter-se no poder, perdendo ou ganhando as eleições. Sem escrúpulos, ataca em todas as frentes, usando diretamente a violência ou mantendo seu jogo de provocações. Ações absurdas e ilegais, como a invasão de um avião comercial para fazer agitação, vão se repetir.

Nas ruas, a oposição democrática dará sua resposta. Grupos da Geração 68 sempre na luta estarão ao lado dos movimentos sociais, centrais sindicais, entidades estudantis e partidos políticos. Hora de erguer as bandeiras e passar dos sussurros para os gritos de fora Bolsonaro e abaixo a ditadura.

*Jornalista e escritor