Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Um ano de instabilidade num país conflagrado

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Publicado em 14/01/2021 às 17:06

Alterado em 14/01/2021 às 17:06

Álvaro Caldas JB

O Brasil passa por um momento de tensão, insegurança e medo. Pandemia e instabilidade política. Janeiro, fevereiro e março, o trimestre que se se inicia, indica que teremos um ano de enfrentamentos e confrontos. Com poucos momentos de trégua para tirar a máscara e relaxar. Um tempo angustiante de vigília, cadáveres, negacionismo, trapaças políticas e pequenos golpes. Que ninguém se iluda sobre o que não é mais possível disfarçar: o Brasil tornou-se um país conflagrado.

Este o ponto mínimo de consciência e responsabilidade que a sociedade democrática deve assumir para barrar os riscos de um retrocesso histórico sem precedentes. Um retrocesso mais do que badalado, a la Trump, o abominável homem das neves que insuflou a invasão do Capitólio, cujas pegadas são seguidas por seu delirante aficionado menor, o que nos coube. O ensandecido capitão detentor do poder federal declarou guerra ao país, ameaçando as liberdades que conquistamos e o respeito aos valores da cultura e da democracia. Sua fixação é a eleição de 2022.

Com os militares do Planalto, sua família, os aliados corruptos e sua tropa peculiar, ele avança metodicamente com a agenda populista de extrema-direita. O que esta em jogo é o poder pessoal com o retrocesso a uma ditadura. Bolsonaro não deve ser subestimado nem folclorizado. Ele não é propriamente um homem sem qualidades, como o matemático Ulrich, um anônimo vienense de 32 anos, desprovido de ambições, personagem do aclamado romance do austríaco Robert Musil, cujo titulo é justamente “O homem sem Qualidades”. O capitão as tem, assim como Hitler e Mussolini as tinham.

A História mostra para onde foram conduzidos os países liderados por estes personagens do nazifascismo, que partiram para a guerra em defesa do fanatismo ideológico e do racismo. Aquele Brasil tido como cordial e carnavalesco tornou-se odioso e irascível, empurrado para um estado de beligerância pelas hábeis provocações e mentiras do conservadorismo bolsonarista, que não respeita a vida e vê no confronto sua forma de manutenção do poder.

A sociedade, o conjunto de partidos de centro e de esquerda, a imprensa, entidades de classe, os movimentos sociais emitem protestos e assistem Bolsonaro por em marcha seu plano golpista, enquanto ele distrai sua plateia com ataques machistas, homofóbicos e misóginos contra seus inimigos. Este é um filme que nos faz lembrar das marchas militarizadas numa Alemanha pré-hitlerista, com tropas SS nas ruas, desemprego, fechamento de fábricas, pauperização e inflação, cenas que se repetem agora. O fim do auxilio emergencial pode levar 3,4 milhões de pessoas para a extrema pobreza, elevando o número de desamparados este ano no Brasil para 17 milhões de pessoas, segundo uma pesquisa publicado pelo Instituto Brasileiro de Economia/FGV.

Basta caminhar pela avenida Rio Branco, centro do Rio, para constatar a espantosa aglomeração de camelôs, lojas de portas fechadas e uma ronda de grupos de desempregados, num desfile de seres humanos ultrajados que tiveram sua humanidade roubada. Com seu comércio, galerias, cafés, redações de jornal, bancos, o burburinho de pessoas cruzando as esquinas com a Ouvidor e a Sete de Setembro, logo adiante o Teatro Municipal, a Rio Branco foi um agitado centro comercial e cultural do Rio.

Hoje barracas de madeira e redes remendadas aparecem em alguns pontos, crianças sujas e feias perambulam ao lado de homens e mulheres taciturnos, num retrato desalentador de uma Cidade que teve seus encantos. Ao mesmo tempo, na avenida Paulista, o ministro ultraliberal Paulo Guedes janta na Fiesp com banqueiros e empresários. Pediu apoio para a manutenção do arrocho fiscal, o grande e pervertido prazer dos economistas liberais.

A esta altura, quando vários países já deram início à vacinação contra a covid 19, o brasileiro não sabe quando será vacinado. A saúde pública tornou-se uma área conflagrada, que junta os atos de sabotagem do presidente contra o início da vacinação com um ministério da saúde entregue a um militar parrudo e incompetente, que imagina estar participando do desembarque de tropas aliadas na Normandia.

A média diária de mortes por covid está acima de mil, alcançando o total de 206 mil desde o início da pandemia. À frente do Comitê de Combate ao Coronavírus, o neurocientista Miguel Niocolelis estima que com a demora no início da vacinação chegaremos a 500 mil mortos, considerando os números atuais e a subnotificação.

Tudo serve a Bolsonaro. Para fortalecer seus grupos de apoio armado, libera a compra e porte de armas de fogo para as milícias. E articula com bancada da bala dois projetos de lei para dar autonomia às polícias civil e militar. Já durante a ditadura, as PMs foram controladas pelo Exército e serviram à repressão política. Governadores consideram que as mudanças trarão graves consequências para as eleições presidenciais de 2022, cujos resultados o capitão já anunciou que irá questionar.

Faz falta ao país neste momento uma imprensa independente e crítica ao projeto autoritário do presidente, que pratique um jornalismo isento e defenda com convicção e seriedade os valores da democracia. Falta um jornalista do porte de Samuel Wainer, (1912/1980) fundador da Última Hora e de outros diários e revistas.

Grande repórter, Samuel liderou campanhas Brasil afora, envolveu-se em inúmeras polêmicas durante a era Vargas, em especial com Carlos Lacerda, seu antípoda. Tornou-se ele próprio um protagonista da história brasileira na segunda metade do século 20. Por sua dimensão histórica, acaba de ganhar uma nova biografia, Samuel Wainer, o homem que estava lá, de Karla Monteiro, Cia. Das Letras.

*Jornalista e escritor