Cult, Pop & Rock

Por CAL GOMES

CULT, POP & ROCK

Na cama com Frampton

Publicado em 18/05/2024 às 17:25

Alterado em 18/05/2024 às 17:25

. Foto: divulgação: Michael Zagaris

Não tenho certeza se foi o ruído de algum animal caminhando no sótão ou se o incômodo do braço dormente que me acordou durante uma das madrugadas geladas do início de maio. Ludowica, minha delicada felina, deitada entre os meus pés, sobre o edredom, embolado, embaraçado, talvez, pelos momentos agitados de alguns dos meus sonhos, sempre densos e tensos, me encarava, docemente, como se compreendesse que o meu sono interrompido abruptamente era o motivo de minha irritação.

Sonolento, olhei para o teto do quarto, ainda escuro, como se possuísse olhos de Raio X, tentando descobrir a identidade do invasor barulhento por entre o forro de madeira, precisando de novas pinceladas de verniz, e as telhas-canoas-ocres do chalé corroídas pelo tempo. Em seguida, encarei a luz levemente azulada que começava atravessar a janela descortinada, driblando os fios e gotas do sereno que escorriam pela vidraça e que se espalham mansamente por todos os cantos do sítio nesse novo ciclo outonal glacial que se inicia por aqui.

Os olhos, ainda preguiçosos, conseguiram ver lá fora, no quintal, a laranjeira colorida pelo verde das folhas e o amarelo dos frutos; o velho abacateiro, já infértil; e parte da fileira de centenas de pinheiros que demarcam os limites da propriedade. O céu, se desfazendo do seu tom negro aveludado noturno, se preparava para receber os primeiros voos das centenas de pássaros que, ainda adormecidos, em algumas poucas horas se exibirão com acrobacias, quase que infantis, e mergulhos rasantes, quase que suicidas.

O galo, que normalmente me desperta por volta das 6, se mantinha silencioso, recluso no seu harém. Na penumbra, busquei o celular ao lado da cama para confirmar nas horas e minutos digitais o quanto ainda era demasiadamente cedo, para, logo em seguida, alcançar o ipod transbordando álbuns e canções que, invariavelmente, me socorrem nos momentos de sossego ou inquietação.

De uma das mãos ainda formigando pela dormência, deslizei o dedo indicador pelo visor do pequeno aparelho à procura de uma trilha sonora que me ajudasse a enfrentar as próximas duas horas antes do café despertador e dos meus primeiros movimentos no novo dia frio e ensolarado.

Em questão de segundos, o rosto pálido de Peter Frampton, emoldurado por sua cabeleira loura, mas, na foto, tingida de violeta pelas luzes das lâmpadas spot do palco, surgiu, sugerindo que eu aguardasse a manhã chegar ouvindo o álbum ao vivo mais vendido da história da música: Frampton Comes Alive.

Desde a metade dos anos 70, ainda menino, que acompanho a história pessoal e musical do cantor e guitarrista inglês. Durante todos esses longos anos, A voz de Frampton e sua guitarra elegante e furiosa sempre estiveram presentes em minha vida. Me seguindo durante uma infinidade de momentos. Em um looping às vezes acelerado, como os seus rocks, às vezes, lento, como as suas baladas. Como as suas dezenas de maravilhosas canções, algumas delas interpretadas, executadas, gravadas, de forma magistral, como a emocionante Lines on my Face (que ouço agora, enquanto escrevo essa coluna), nesses históricos registros ao vivo, captados em shows antológicos divididos em palcos da Califórnia e de Nova Iorque, EUA, durante 1975, que deram origem ao Frampton Comes Alive, lançado em 1976, e que, nos meses seguintes, como mágica, atingisse o topo das paradas de todo o planeta, alavancando a sua carreira, que se encontrava estagnada desde a sua saída da banda Humble Pie e os primeiros discos solos que vieram em seguida.

Quase meio século se passou desde o estrondoso sucesso do seu aclamado, consagrado, álbum ao vivo. Entre todos estes anos, o exímio guitarrista caminhou por estradas que o conduziram confortavelmente à glória, fama, e fortuna, mas que, também, o fizeram tropeçar, derrapar, em ásperos períodos marcados por fracassos nas relações amorosas, insucessos na carreira, falência financeira e deterioração física.

Hoje, aos 74 anos, sem exibir mais aquela imagem dourada de garoto-roqueiro-cabeludo-setentista-bonito, com dificuldades de continuar a caminhada após ser atingido em 2019 por uma doença degenerativa que afeta os movimentos das pernas, braços e mãos, Peter Frampton, em uma entrevista no final de abril à revista Rolling Stone, confessou que está mais empolgado e feliz do que nunca. Relembrando, orgulhoso, toda a sua trajetória musical. Explicando, corajosamente, as razões por ter desistido da ideia de parar de se apresentar em shows para os seus milhares de admiradores. E, entusiasmado, agradecido, orgulhoso, comemorando, finalmente, após uma espera de 30 anos, a grande oportunidade de subir ao palco em 19 de outubro, em Cleveland, EUA, mesmo com o auxílio de uma bengala, para ser conduzido e homenageado no famoso Rock and Roll Hall of Fame.

Peter Frampton still comes alive!