Cult, Pop & Rock

Por CAL GOMES

CULT, POP & ROCK

As águas do fim de março

Publicado em 01/05/2024 às 09:53

Alterado em 02/05/2024 às 14:39

. Pixabay

No fim da manhã de 22 de março, uma sexta-feira quente e úmida do segundo dia de outono, o aviso de alerta foi dado pelo Sistema Nacional de Meteorologia: Uma tempestade violenta atingiria a região sul do estado do Espírito Santo e seria prudente que os habitantes de várias cidades se preparassem para uma tarde e noite sujeitas a chuvas pesadas.

Vivendo isolado e incrustado no interior de uma parte da Mata Atlântica capixaba, desde janeiro de 2017, já havia me acostumado com as cheias do rio que divide o sítio onde me "escondo" dos estresses urbanos em um pequeno chalé. As minhas maiores preocupações sempre foram com as constantes quedas de energia elétrica dessa época do ano e dos raios que, invariavelmente, atingem a rede de distribuição, danificando equipamentos eletrônicos de todos os tipos.

O aviso de "Perigo, Perigo, Perigo!" vindo do simpático robô da velha série Perdidos no Espaço, exibida em um canal obscuro, me distraia na TV nos primeiros minutos das 21 horas. O barulho da chuva e dos trovões vindo lá de fora, da noite escura, não me incomodou até eu me lembrar do aviso de "Perigo" muito mais importante e real que foi enviado, sistematicamente, pela mídia, durante todo o dia.

Em questão de minutos as águas do rio invadiram minha casa, violentamente, pelas portas da frente e dos fundos. Rapidamente subiram, me atingindo na altura dos joelhos, me encurralando na cozinha. Sentado na pia assisti, acompanhado da minha assustada gatinha Ludowica, muitos objetos pessoais boiando por todos os lados. Entre eles, dezenas de meus livros acumulados durante quase 4 décadas. O desespero e o medo daquele momento só me fizeram pensar como eu iria escapar daquela tragédia. Como iria sobreviver.

Aliviado ao notar que as águas barrentas cor de café com leite começaram a baixar, saí imediatamente daquele ambiente caótico e, socorrido por meu cunhado Beto, encontrei abrigo na casa principal, localizada em uma parte mais alta do sítio, onde as águas não atingiram. Aflita, minha irmã Rosana me aguardava transtornada.

No outro dia, ao amanhecer, voltei ao chalé para ver todo o resultado daquelas tenebrosas horas que vivi na noite anterior. Na sala e no meu quarto eu só conseguia enxergar meus livros semi sepultados em grossas camadas de lama. Entre várias perdas, só conseguia lamentar a de todos eles que, indefesos, desprotegidos, daquele "tsunami", estavam nas prateleiras inferiores das estantes.

No meio dos tantos títulos perdidos, sujei as minhas mãos desenterrando um em especial: 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer. Um dos meus principais guias de consulta, conhecimento e pesquisa musical. Após minutos de lamentação, o devolvi ao chão enlameado. E, quase levianamente, fiquei pensando o quanto de discos eu iria deixar de ouvir caso as águas da noite anterior tivessem subido mais uns 2 metros e me levassem desta vida.

Felizmente, como um milagre, as águas pararam, desceram...me poupando do pior.

Talvez, também, para que eu tivesse uma nova chance, para que continuasse por aqui, como um presente. Me permitindo continuar saboreando momentos de felicidade e prazer. Para ser surpreendido com doces, delicados e simples momentos, aqueles que, vez ou outra, a vida nos dá. Como o de ter recebido de presente do Celso Junior, um generoso e fiel amigo do Rio, uma nova edição do 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer. Ou para ainda ter a chance de viver o sonho que me dominava desde os primeiros meses de faculdade de jornalismo, nos anos 80: o de escrever uma coluna para o meu querido Jornal do Brasil.