COISAS DA POLÍTICA

Batalha de arroz num ringue de 200 milhões

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Publicado em 09/06/2024 às 07:19

Alterado em 09/06/2024 às 07:19

[Sacos de arroz no supermercado] Só em maio, segundo a Fundação Getúlio Vargas, a saca de 60kg de arroz subiu 3,40%, após queda de 2,59% em abril Foto: reprodução/Sensus Notícias

Há 40 anos, o dramaturgo Mauro Rasi escreveu a divertida comédia “Batalha de arroz num ringue para dois”, na qual retratava as diversas fases de alegrias e eventuais crises de um casamento. Esta semana, tivemos uma proverbial e extemporânea “batalha do arroz”. Não, caro(a) leitor(a), não foi uma nova encenação da peça do saudoso teatrólogo. Apenas mais um round do paroxismo do liberalismo econômico levado para o ringue da política pelos adeptos do bolsonarismo. Dois deputados federais gaúchos Marcel Van Hattem, do Novo, e Lucas Redecker, do PSDB, e o deputado estadual Felipe Camozzato, também do Novo, entraram com liminar na justiça do Rio Grande do Sul para impugnar o leilão de importação de 300 mil toneladas de arroz asiático pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Depois de várias idas e vindas (a Advocacia Geral da União derrubava a liminar, mas os deputados e entidades do agronegócio recorriam novamente ao tribunal), o leilão foi realizado na quinta-feira. Os produtos serão distribuídos a 21 estados brasileiros e ao Distrito Federal. Um novo leilão, de 36 mil toneladas, será realizado em uma semana para serem destinadas aos estados do Amazonas, Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Piauí, Rondônia, Roraima, Santa Catarina e Tocantins. A saca de cinco quilos custará R$ 4 por quilo.

A compra pública de arroz importado e beneficiado pelo Executivo tornou-se uma queda de braço entre o setor produtivo e o governo federal. O Ministério da Agricultura e a Conab alegam que a medida visa frear o aumento especulativo dos preços do cereal no país, devido às consequências econômicas das enchentes do Rio Grande do Sul. O governo federal está pensando no impacto inflacionário – que, pelo grau de indexação da economia brasileira, extrapola o simples preço do arroz e contamina os preços que atingem mais de 200 milhões de brasileiros, incluindo os 11milhões de gaúchos, e leva o Banco Central a manter os juros altos por mais tempo. Já as entidades do agronegócio, alinhadas a Bolsonaro, argumentavam que não há risco de desabastecimento e nem necessidade de recorrer às compras públicas para reequilibrar o mercado. O setor também move uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a intenção de importação de 1 milhão de toneladas de arroz pelo Executivo.

As chuvas extraordinárias de fins de abril, que se estenderam pelo mês de maio, arrasaram boa parte do Rio Grande do Sul. O estado que tem pouco mais de 11 milhões de habitantes, dos quais 1,3 milhão estão em Porto Alegre e o dobro disso nas regiões alagadas pela cheia do Lago Guaíba, que ainda não voltou ao nível normal, concentra 6,5% do Produto Interno Bruto do país e lidera a produção de alguns bens industriais e agrícolas. Um deles é o arroz, com 65% a 70% da produção nacional concentrados em terras baixas e alagadas na Grande Porto Alegre. Por sorte, quase toda a colheita tinha se encerrado em fevereiro-março. Mas a dúvida sobre se os estoques estavam a salvo das enchentes gerou um movimento especulativo nos mercados atacadistas que alarmou o governo federal. Só em maio, segundo a Fundação Getúlio Vargas, a saca de 60kg de arroz subiu 3,40%, após queda de 2,59% em abril). Foi para evitar uma contaminação inflacionária especulativa com o arroz que o governo decidiu pela importação.
Os erros do liberalismo

O Brasil viveu uma experiência traumática em 2020, quando o recolhimento em casa da pandemia da covid aumentou o tradicional consumo pelas famílias do arroz com o feijão, binômio da refeição brasileira. Mas o liberalismo em excesso aplicado no governo Bolsonaro - no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), na gestão da ministra Tereza Cristina, levou o governo a abdicar da função de regular o abastecimento. Para deixar inteiramente livres as forças do mercado, Tereza Cristina extinguiu os estoques reguladores da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e estimulou as exportações.

Quando chegou o mês de setembro de 2020, o país que se orgulha de ser o celeiro do mundo, como maior exportador de soja, carne bovina e de frango, suco de laranja, café e açúcar e o 2º de algodão e milho, viveu uma situação esdrúxula. O óleo de soja já tinha subido 51% e faltava soja em grão para esmagar e extrair óleo, pois a produção fora exportada. Como o Mapa no governo Bolsonaro deletou o A do Abastecimento, o presidente ficou perplexo com a falta do óleo de soja e do arroz, que já subira 40,91% até setembro, segundo o IBGE. Sem estoques oficiais ou particulares, o Brasil teve de importar soja em grão (principal produto exportado há três décadas), arroz e leite em pó. O vexame da compra de soja seria semelhante a uma brusca falta de café (o gestor do Mapa tem de acompanhar os mercados dos diversos itens e não pode ser surpreendido pela súbita escassez de um produto).

As importações não frearam a especulação a tempo: o ano de 2022 fechou com o óleo de soja subindo 103,79%, segundo o IBGE, e o arroz tendo alta de 76,01%. Enquanto o leite longa vida subiu 26,93%. Como resultado, os preços da Alimentação e Bebidas tiveram alta de 14,09% e provocaram a subida do índice geral de inflação (IPCA) nos últimos meses do ano para 4,52%. A inflação ainda ficou dentro do teto da meta (4,00%+1,50% de tolerância= 5,50%), mas o Banco Central sentiu forte pressão dos alimentos em 2021 e o IPCA de 10,06% estourou o teto da meta (3,75%+1,50%=5,25%). A falta de zelo do Mapa e do governo Bolsonaro em cuidar de estoques elevou a inflação dos alimentos às alturas e empurrou a taxa de inflação em 12 meses para a faixa de dois dígitos em 2021 (10,06%) e 2022, que estava em 12,3% até abril, levando o Banco Central a elevar os juros até 13,75% ao ano em agosto, nível que permaneceu até agosto de 2023.

Em fins de junho de 2022, percebendo que a inflação tirava votos e a política do Banco Central asfixiaria a economia e o emprego, sepultando as chances de reeleição do presidente, o ministro da Economia, Paulo Guedes, deixou o liberalismo de lado e cortou os impostos federais e estaduais de combustíveis, energia elétrica e comunicações. Isso derrubou a inflação para 5,79%, mas ainda não impediu a eleição de Lula. E o Banco Central foi outra vez reprovado no esforço de deixar a inflação no teto da meta (3,50%+1,50%=5,00%). A inflação voltou a ficar dentro do teto em 2023 (4,62%), graças à supersafra de grãos e à nova política de preços da Petrobras, que estabilizou os valores dos combustíveis e evitou contaminação geral do IPCA, não pela política do BC.

Arroz afeta até planos de saúde
O processo de indexação na economia brasileira pede vigilância mais de perto nos preços críticos de bens e serviços da economia. Entre os 377 itens pesquisados mensalmente pelo Instituto Brasileiro de Economia, o maior peso é o da gasolina – por isso Guedes fez a intervenção em 2022, cujos impactos ainda são sentidos no retorno gradual dos impostos (a níveis inferiores).

Vejam o caso dos reajustes anuais dos planos de saúde individuais ou familiares. Depois de ficar vários acima de 10% ao ano - as exceções foram em 2020 (+8,12%, referente a custos de 2019) e 2021, quando houve redução de 8,19%, em 2022 ocorreu o rebate de custos na bonança, com reajuste de 15,50% aplicados desde maio de 2023 em diante -, agora, os reajustes autorizados em maio pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) ficaram em 6,91% a partir de maio de 2024. Trata-se do menor reajuste desde os 6,73% de maio de 2010. Os reajustes da ANS levam em conta uma média entre a variação de 80% dos custos das despesas médicas e 20% da variação do IPCA. Ou seja, o reajuste deste ano até abril de 2025 teve influência decisiva a baixa da variação dos preços dos Alimentos e Bebidas, que tem o maior peso no IPCA, dos 11,64% de 2022 para apenas 1,03% em 2023, o que derrubou a inflação de 5,79% para 4,62%, mesmo com a recomposição de impostos cortados em 2022.

Como se percebe, discussões aparentemente pueris no Congresso como o debate da medida das “blusinhas”, a taxação sobre compras de importados até US$ 50,00, com alíquotas progressivas além deste limite, têm impacto em toda a política econômica. Se o governo não importa ou autoriza a importação de arroz, o setor privado, em nome da “liberdade de mercado” especula à vontade com os preços no atacado, o que leva para cima outros preços. Com a resistência da inflação em ceder – uma nova safra só viria em fevereiro-março de 2025, porém com incertezas quanto à capacidade dos proprietários atingidos pelas enchentes de recuperar instalações, máquinas e a produção – o Banco Central mantém os juros elevados por mais tempo e afeta a economia em todos os estados brasileiros, derrubando a atividade e o emprego. Não é escolha de Sofia. Entre preservar discutíveis princípios e proteger rizicultores e empresários que beneficiam arroz no RS, todo o país pagaria mais caro, ou agir em nome de outros 200 milhões, o governo deve agir.

Festa da democracia em 2024
As eleições da Índia (900 milhões de eleitores participaram sábado, da reeleição de Narendra Modi, mais apertada, sem maioria no Congresso, do que previa) e no México (onde 100 milhões de eleitores foram às urnas no domingo passado e elegeram Cláudia Sheinbaum como a primeira presidente do país), são apenas duas das maiores festas da Democracia entre os 77 processos eleitorais que terão lugar este ano, segundo levantamento do banco J.P. Morgan. A eleição de Cláudia Sheinaum, no México, já alterou as cotações do peso mexicano, que teve forte queda frente ao dólar.

A próxima batalha que tem influência na economia é o processo eleitoral no Reino Unido, que escolhe, dia 4 de julho, entre o atual primeiro-ministro conservador britânico, Rishi Sunak, e o líder trabalhista Keir Starmer. O líder da oposição lidera as pesquisas até aqui. Mas nada será mais importante para o mundo e as repercussões climáticas do que o “tira-teima” entre Joe Biden e o ex-presidente Trump, nos Estados Unidos, que concorre embora condenado.

Agora no verão americano, republicanos e democratas realizarão as suas convenções nacionais, que nomeiam oficialmente os candidatos presidenciais e vice-presidenciais dos respetivos partidos, e cada partido estabelece a sua plataforma partidária. No outono, a campanha esquenta e os debates presidenciais são realizados. Por fim, na terça-feira, 5 de novembro de 2024, é realizada a eleição. O Colégio Eleitoral vota oficialmente em 17 de dezembro, e a nova administração é inaugurada em 20 de janeiro de 2025.

Quem leva Colégio Eleitoral e Congresso?
A corrida presidencial irá cativar mais os eleitores, mas o fundamental para o sucesso de um presidente na aplicação da sua agenda é a composição do Congresso, composta pelo Senado e a Câmara dos Representantes. Para ser eleito, não valem os votos majoritários, mas sim os do Colégio Eleitoral, cujos delegados elegem o presidente. Há 538 votos disponíveis no colégio eleitoral e são necessários 270 para vencer. Em 2020, o presidente Biden obteve 306 votos e o ex-presidente Trump obteve 232 votos. Portanto, o candidato republicano precisaria obter mais 38 votos em relação a 2020. Embora 38 votos possam parecer um aumento significativo, em 2020, três estados (Geórgia, Arizona e Wisconsin) responsáveis por 37 votos no colégio eleitoral foram determinados por menos de 43.000 votos individuais.

Várias disputas foram convocadas dias após a eleição, e cinco disputas tiveram menos de 2% de distribuição de votos entre os candidatos – Georgia, Arizona, Wisconsin, Pensilvânia (vencida por Biden) e Carolina do Norte (vencida por Trump). Esses estados, juntamente com Nevada, Michigan e Flórida, provavelmente determinarão o próximo presidente dos Estados Unidos.

Senado, pendente por 2 assentos
Há 100 assentos no Senado, e os senadores cumprem mandatos escalonados de 6 anos, portanto, a cada dois anos, cerca de um terço do Senado é eleito [aqui o mandato é de 8 anos, com renovação parcial em 4 anos]. O Senado é atualmente composto por 48 Democratas, 49 Republicanos e 3 Independentes que normalmente votam com os Democratas (Maine, Arizona, Vermont). Em 2024, 34 assentos serão eleitos, 23 atualmente ocupados por democratas e 11 por republicanos. De acordo com o The Cook Political Report, existem três estados em disputa, todos atualmente detidos por democratas: Arizona, detido por Kyrsten Sinema (que foi eleito democrata, mas tornou-se independente); Ohio, detido por Sherrod Brown; e Montana, detido por Jon Tester. O senador democrata Joe Manchin, da Virgínia Ocidental, não concorrerá novamente, então é muito provável que essa cadeira passe para o Partido Republicano.
Os republicanos precisam de dois assentos para controlar o Senado, ou apenas um, se também ganharem a Casa Branca, já que o vice-presidente dá votos de desempate. Portanto, não há muito terreno para os Democratas ganharem, e correm o risco de perder a sua pequena maioria.

Câmara dos Representantes
Todos os 435 assentos na Câmara dos Representantes são eleitos a cada dois anos. A Câmara consiste atualmente de 221 republicanos, 213 democratas e 1 cadeira vaga (anteriormente ocupada por um republicano). Os democratas precisariam ganhar cinco cadeiras para assumir o controle da Câmara.

Os EUA vão melhor com os democratas
O J.P. Morgan lembra que desde 1947, o PIB real cresceu em média 2,8% sob o regime republicano e 4,0% sob o regime democrata.

Já o S&P 500, o principal indicador de valorização das 500 maiores empresas na Bolsa, teve um retorno de 12,9% sob o comando dos republicanos e de 9,3% sob o comando dos democratas.

Ou seja, o PIB e o emprego vão melhor com os democratas, mas os investidores lucram mais com os governos republicanos.

Aqui no Brasil, o mercado financeiro abraçou Paulo Guedes com Bolsonaro em 2018 e seguiu apoiando em 2022, mas a maioria da população, de menor renda, preferiu um governo com mais visão social como o de Lula.

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