COISAS DA POLÍTICA

Tem peixes grandes nas redes da PF!

Cenas de um golpe fracassado

Publicado em 11/02/2024 às 06:02

Alterado em 11/02/2024 às 08:43

[Bolsonaro] Cerco se fechando Foto: Evaristo Sá/AFP

Em 05.07.2022, uma semana depois de conseguir do Congresso a aprovação do megabilionário pacote eleitoral gerido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes (com cortes, até 31.12.2022, dos impostos federais e estaduais de combustíveis, energia elétrica e comunicações, e farta distribuição de dinheiro aos eleitores, com aumento de R$ 400 para R$ 600 no Auxílio Emergencial, além de mesadas de R$ 1 mil, até dezembro, para caminhoneiros autônomos e taxistas, que causam rombos orçamentários até hoje), Lula continua liderando as pesquisas.

O presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição, se desespera. E reúne, com direito à filmagem de todo o evento de mais de duas horas, o estado-maior do golpe, que ensaia desde 2021, para intensificar os ataques às urnas eletrônicas e preparar o cenário alternativo de um golpe com as Forças Armadas antes da votação em primeiro turno, em 3 de outubro. Pouco mais de uma semana, como menciona na gravação do evento, usa o aparato da Presidência de República para convocar os embaixadores estrangeiros acreditados, em Brasília, para derramar “fakes news” sobre as urnas eletrônicas, o que custou 8 anos de inelegibilidade.
Além de Bolsonaro, estão presentes duas dezenas de ministros e assessores. A começar pelo general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, eterno fracassado como conspirador.

Augusto Heleno era ajudante de ordens do então ministro do Exército, general Sylvio Frota, na tentativa de derrubar o presidente general Ernesto Geisel. Mas Geisel, que tinha o então Serviço Nacional de Informações, comandado por João Baptista de Figueiredo, nas mãos, numa manobra de contra-informação, se antecipa à trama de Frota de convocar os generais do alto comando a uma reunião no QG do Exército, em Brasília, também conhecido como “Forte Apache”, e convoca os mesmos generais ao Palácio. Já disposto a demitir Frota, convida o general Fernando Bethlem, que comanda a arma em São Paulo (e com quem Frota contava), para ser o novo ministro do Exército. Esvaziado com a falta de atendimento às suas convocações na véspera, o general Sylvio Frota é chamado por Geisel ao Palácio do Planalto e demitido, após áspero diálogo.

Augusto Heleno remoeu o insucesso ao longo de sua carreira, com mais episódios fracassados. Um deles foi o afastamento do Comando das Forças de Paz da ONU, no Haiti, representada por soldados do Brasil, durante o governo Dilma, depois da morte de dezenas de civis. Mas ele reencontrou seu chão com Bolsonaro e ajudou a montar na Agência Brasileira de Informação (Abin), sucedânea do SNI, uma “Abin Paralela” para espionar autoridades tidas como antagonistas de Bolsonaro e suas tramas golpistas, ajudar a desmontar inquéritos contra familiares e amigos, além de infiltração de agentes nas campanhas dos adversários de Bolsonaro na eleição de 2022.

Só faltou desenhar
Loquaz e boquirroto, o general Heleno quase dá com a língua nos dentes ao começar a escancarar a atuação dos “kids pretos”, agentes das forças especiais do Exército, infiltrados pelo GSI nas campanhas dos adversários (que viriam a atuar em quase todas as "motociatas" e grandes eventos de Bolsonaro, especialmente em 12.12.2022 e em 08.01.2023). Escolado com as revelações que vieram a público na reunião de 20.04.2020 (por determinação do então decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello), quando dá os sinais de montagem da “Abin Paralela”, Bolsonaro corta rispidamente o general Heleno: “Falamos disso depois, no particular”.

Na conspirata de julho de 2022, além do ícone dos economistas liberais brasileiros, o ministro da Economia, Paulo Guedes, que seguia seu currículo antidemocrático (recém-formado em Chicago, como aluno de Milton Friedman, foi um dos artífices do projeto ultraliberal da ditadura Pinochet, no Chile, que arruinou as aposentadorias de milhares de chilenos, e estava pronto para cooperar com o governo Paulo Maluf, derrotado por Tancredo Neves, em 1985), estava ainda presente o general Walter Braga Neto. Desde abril de 2022, quando deixou o cargo de ministro da Defesa, Braga Neto era assessor especial da Presidência e cogitado a vice da chapa de Bolsonaro (em 2023, também foi considerado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral).

Com a autoridade de ex-ministro da Defesa (o cargo foi passado em 1º de abril ao ex-comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira, que sobe o tom contra a segurança das urnas eletrônicas), Braga Neto se encarrega de mobilizar os altos escalões das forças armadas para o golpe. Presente, o general Paulo Sérgio Nogueira, com a ajuda decisiva do ajudante de ordens da Presidência, tenente-coronel Mauro Cid. O tenente-coronel veio a ser nomeado o comandante do Batalhão de Operações Especiais do Exército, em Goiânia, uma das forças mais operosas do aparato militar brasileiro e que teria papel fundamental no golpe. Cid se encarregava, com desenvoltura, das articulações junto a escalões intermediários, e seus registros em celulares e computadores ajudaram a Polícia Federal a rastrear todas as tramas.

Depois do golpe frustrado de 8 de janeiro de 2023, quando os golpistas que fizeram um ensaio de arruaça em Brasília, na noite de 12.12.2022, após a diplomação de Lula e do vice Geraldo Alckmin, colocaram o bloco na rua e depredaram as sedes dos Três Poderes, na esperança de convocação da Garantia da Lei e Ordem (GLO), que deixaria o governo Lula sob tutela das Forças Armadas (Lula optou, em articulação com Moraes, que decretou a intervenção na Secretaria de Segurança do Distrito Federal e a prisão do governador Ibaneis Rocha, por intervir no comando da PM-DF), Cid acabou preso, após o regresso dos Estados Unidos (Orlando, onde acompanhou o “exílio” estratégico de Bolsonaro, para evitar ser ligado aos atos golpistas). Na gravação, cita seu temor de ser preso ao descer a rampa. (quem não deve, não teme).

Antes de ser preso, Mauro Cid teve a nomeação revertida por Lula. Como o comandante do Exército, general Júlio Cesar Freire, empossado em dezembro, ainda no governo Bolsonaro, bem como os demais comandantes das forças, resistia a cumprir determinação do presidente da República e comandante em chefe das Forças Armadas, Lula determinou ao ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, a demissão de Júlio Cesar Freire e a anulação da promoção de Mauro Cid. Isso se deu em 21 de janeiro de 2023, quando o comando do Exército foi assumido pelo general Tomás Paiva, que comandava o setor Leste.

Na prisão, que se estendeu a seu pai, general Muro Lorena Cid, nomeado por Bolsonaro como adido na Agência de Promoção de Exportações (Apex), em Miami, mas cuja atuação veio à tona na intermediação da venda de joias e relógios de luxo recebidos por Bolsonaro enquanto presidente da República (pertencentes ao Acervo da Presidência), Mauro Cid acabou colaborando com as autoridades e fez acordo de delação premiada com a Polícia Federal.

Troca na PGR muda cenário
A rigor, a partir dos inquéritos relativos ao 8 de janeiro de 2023, ao 12 de dezembro de 2022 e à tentativa, também frustrada, de explosão de um caminhão de querosene de aviação no aeroporto de Brasília, na antevéspera do Natal de 2022, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, já tinha um extenso mapeamento das atividades dos que estiveram na linha de frente das arruaças em Brasília – alguns dos quais já foram condenados a penas severas –, mas faltava uma ação mais incisiva contra os mentores e financiadores do golpe.

Isso só se tornou possível em dezembro, depois que o procurador-geral da República, Paulo Gonet, foi aprovado em sabatina e votação no plenário do Senado, em 13 de dezembro, juntamente com a indicação do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, para a vaga de Rosa Weber no STF, para comandar a PGR. Desde 2019, a PGR estava confiada em dois mandatos ao procurador Augusto Aras. O mandato de Aras expirou em 26 de setembro de 2023, mas Lula queria acertar a troca da PGR junto com a do STF. Aras, como se sabe, arquivou pilhas de ações contra Bolsonaro.

Já Gonet, como procurador eleitoral, comandou as acusações que levaram à condenação de inelegibilidade do ex-presidente por 8 anos, bem como do seu vice, general Braga Neto. Com apoio da PGR, que só começou, efetivamente, a operar sob nova direção em fevereiro (a nomeação por Lula foi em 15 de dezembro, e a posse, em 18 de dezembro, coincidiu com o recesso do Judiciário – e do Legislativo). Moraes, desde janeiro, agia afinado com Gonet e seus assessores na PGR, e pôde queimar etapas e escalar os alvos das operações da Polícia Federal.

Assim, em 29 de janeiro, uma segunda-feira, o presidente Bolsonaro, que estava em sua casa de Mambucaba (Angra dos Reis-RJ) com os três filhos políticos (o senador Flávio Bolsonaro, PL-RJ, o deputado Eduardo Bolsonaro, PL-SP e o vereador carioca Carlos Bolsonaro, também do PL), não chegou a presenciar a chegada dos agentes da PF. Por coincidência, que a apuração sobre a eventual continuidade da “Abin Paralela” no governo Lula poderá esclarecer, o clã Bolsonaro saiu ao mar, “para pesca submarina”, às 5 da manhã, e a PF bateu à porta depois da 7 horas. Com mandado de busca e apreensão nos diversos endereços de Carlos Bolsonaro, que coordenava o “gabinete do ódio” em Brasília, no Palácio do Planalto, em vez de dar expediente no Palácio Pedro Ernesto - a Câmara dos Vereadores do Rio, os agentes da Polícia Federal apreenderam vários celulares e computadores, incluindo seu gabinete de vereador e a residência no condomínio “Vivendas da Barra”, onde morou Bolsonaro, que teve como vizinho o executor da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, o ex-PM Roni Lessa.

Na mesma operação, foram objeto de busca e apreensão outras quatro pessoas, entre elas o deputado federal e ex-diretor geral da Abin, delegado federal Alexandre Ramagem, acusado de “arapongagem” contra membros do governo, do STF e Legislativo, além de jornalistas e advogados que faziam oposição ao governo Bolsonaro. Embora mostrassem contrariedade com a ação da PF, Bolsonaro e filhos se julgaram a salvo de maiores problemas. A bola da vez era Ramagem.

Só que não. Se na semana passada o mar estava para os “pescadores submarinos”, agora foi a vez de peixes graúdos serem apanhados nas redes em vários pontos do Brasil. A carga veio mais forte uma semana depois, na simbólica data de 08.02.2024. Um ano e um mês após a reação do Estado Democrático de Direito à frustrada tentativa de golpe do bolsonarismo, os braços da lei chegaram à cúpula do esquema. Incluindo o presidente do PL, deputado Valdemar Costa Neto (PL-SP), detido por ter uma arma em seu poder sem autorização. E a prisão em flagrante virou preventiva. Para evitar risco de fuga de Bolsonaro, Moraes determinou a apreensão de seu passaporte. Nas buscas e apreensões, muitas peças do quebra cabeças serão completadas. A rigor, só faltam as ligações dos financiadores do golpe.

'Quando o Carnaval chegar'
A folia do Carnaval pode ter interrompido as diligências da Polícia Federal, mas a maior parte do Brasil aguarda, como nos versos de Chico Buarque, em “Quando o Carnaval Chegar”, para a verdadeira comemoração – um carnaval fora de época, quando à frente, como canhestro mestre-sala da direita, Jair Bolsonaro for detido por erros de evolução junto com seus parceiros no golpe ao Estado Democrático de Direito.

Mundo democrático de olho no Brasil
O exemplo que o Brasil vier a dar será muito importante para o mundo democrático, especialmente os Estados Unidos da América. Lá houve a mais infame das tentativas de subversão da ordem democrática da mais pujante democracia do mundo, em 6 de janeiro de 2020, quando o então presidente Donald Trump, derrotado na votação direta e no Colégio Eleitoral, insuflou seus apoiadores (“prouds boys”, equivalentes, voluntários, aos “kids pretos” das fileiras do Exército Brasileiro), a invadir o Capitólio para impedir a diplomação de Joe Biden e da vice-presidente eleita, Kamala Harris, na cerimônia presidida pelo vice de Trump, Mike Pence, também ameaçado.

Houve mortes em Washington, mas o julgamento de Trump pode demorar e não impedir que concorra a novo mandato, em revanche contra Biden. A demonstração de resistência democrática e do pleno direito de defesa dos acusados no Brasil há de ser um exemplo ao mundo democrático. Uma demonstração de que nada pode substituir a democracia e o Estado Democrático de Direito. Bolsonaro, como ficou claro nos fatos já apurados da reunião de 5 de julho de 2022, queria a restauração do Estado Democrático da Direita, no qual os adversários não teriam vez.