COISAS DA POLÍTICA

Democracia se faz na rua, não é peça para museu

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Publicado em 07/01/2024 às 07:25

Alterado em 07/01/2024 às 07:58

Lula e governadores atravessam a praça dos Três Poderes de braços dados contra o golpe (arquivo) Foto: reprodução de vídeo

Para celebrar a preservação do Estado Democrático de Direito, ameaçado duramente, em 8 de janeiro de 2023, com o fracassado golpe na Praça dos Três Poderes, cujas sedes do Executivo (Palácio do Planalto), do Legislativo (o Congresso, com suas duas casas, a Câmara e o Senado) e o Judiciário (representado pelo Supremo Tribunal Federal) foram invadidas e depredadas pela turba de bolsonaristas que ocupou os locais por mais de quatro horas, até ser expulsa pelas tropas federais lideradas pelo Secretário-Executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Capelli, nomeado interventor na Segurança do Distrito Federal, o governo Lula, por iniciativa do Ministério da Cultura (Minc), vai criar, em área anexa à Esplanada dos Ministérios, o Museu da Democracia, ao lado do Teatro Nacional Cláudio Santoro.

Destinado a ser um espaço planejado para memória e união dos “setores democráticos do país”, a cessão do terreno para o centro cultural é resultado de acordo entre a pasta e a Secretaria de Patrimônio da União (SPU). Orçado em R$ 40 milhões, as verbas sairão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Para selecionar o projeto arquitetônico mais adequado, o Minc e o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) farão concurso nacional. Após o que será feita licitação da execução da obra, prevista para início em 2025.

A iniciativa é bonita, mas inócua. Ademais, um desperdício de dinheiro. Assim como a Constituição Federal de 1988 não está protegida se ficar numa redoma do STF, a Democracia se faz e se sustenta nas ruas, no dia-a-dia, do mesmo modo que o cumprimento da Constituição. Só em casos de conflito se recorre à Justiça e, em última instância, ao Supremo. Por sinal, o exemplar da Constituição que lá estava foi rasgado pelos trogloditas que obedeciam a ordem unida pelas redes para provocar o caos inicial em Brasília, cujas tropas de segurança do DF foram desativadas de vésperas quando o secretário de segurança, Anderson Torres (que fora o último ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Bolsonaro), antecipou férias e partiu para a Flórida ao encontro do ex-chefe.

Pelos planos dos que engendraram o golpe, ensaiado em 12 de dezembro, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) antecipou em uma semana, a pedido do presidente eleito, a diplomação de Luís Inácio Lula da Silva e do vice, Geraldo Alkimin, e houve um primeiro quebra-quebra na Praça dos Três Poderes e na Esplanada dos Ministérios, a intenção da “Festa da Selma” (para não usar o termo Selva, senha das Forças Armadas) era espalhar o caos. Se possível, com pronta adesão nos estados, cujas forças de segurança foram cooptadas por Jair Bolsonaro desde que apoiou a rebelião de quase uma semana, na segunda quinzena de fevereiro de 2020, das forças policiais do Ceará (PM e Polícia Civil) contra o governo petista do estado, então comandado pelo atual ministro da Educação, Camilo Santana. O presidente Bolsonaro, depois de o caos localizado ter provocado 242 mortes no Ceará, teve a cara de pau de dizer que o movimento era uma greve e não um motim. Se não fosse a pandemia da Covid-19 alarmar o país a partir de 18 de março, quando a OMS decretou a pandemia em escala mundial, Bolsonaro ia espalhar o método pelos diversos estados governados pelo PT e partidos da oposição.

O ovo da serpente

Passada a tragédia da Covid, que foi o maior entre os vários fracassos do governo Bolsonaro, o método de criar milícias nos estados, com farta distribuição de porte de armas para policiais civis e militares, para os quais propôs o “excludente de ilicitude”, e para aliados políticos travestidos de CACs (Colecionadores, Atiradores e Caçadores), era o “ovo da serpente”. Aos CACs franqueou-se um milhão de armas, boa parte vendida ao crime organizado pela falta de controle do Exército e da Polícia Federal (agora retomado pela PF). O método veio sendo aperfeiçoado com o beneplácito de uma parte das Forças Armadas, que cruzou os braços a cada investida do presidente. Pela investidura do cargo, ele é o “Comandante em Chefe das Forças Armadas”. Assim o foram Temer, Dilma, Lula, Fernando Henrique Cardoso, Itamar Franco, Collor e José Sarney. Bolsonaro tratava o Exército (do qual fora expulso nos anos 80), como “o meu Exército”. De pronto, exceto oficiais intermediários e a adesão do ministro da Marinha, almirante Almir Garnier, as cúpulas do Alto Comando do Exército e da Aeronáutica (e até da Marinha) foram contra.

Tudo estava programado, desde que semeou a descrença sobre as urnas eletrônicas na vitória de 2018 (preparando o terreno para contestar a derrota seguinte), para a disseminação do caos pelo país, a partir de 30 de novembro de 2022, quando as urnas deram a vitória a Lula por 2,1 milhão de votos. Isso ficou claro no esboço de decreto datado de 12 de dezembro de 2022, encontrado em busca da PF na casa de Anderson Torres, em fevereiro. Seria adotada a Garantia da Lei de da Ordem (GLO), senha para a intervenção das Forças Armadas, diante da anomia das forças de segurança do DF e estados.

Por que o golpe da GLO não funcionou?

Não funcionou o golpe por um motivo básico. Lula, alertado por Flávio Dino, ministro da Justiça e Segurança Pública, que lembrara da intervenção federal das Forças Armadas na Segurança do Rio de Janeiro, no governo Temer, (gestão de Luiz Fernando Pezão), quando o general Walter Braga Neto (vice na chapa derrotada de Bolsonaro) assumiu a intervenção federal localizada. Dino convenceu Lula (a GLO já estava preparada no Ministério da Defesa, comandado por José Múcio Monteiro), com apoio imediato de Janja, que a adoção da GLO emparedaria Lula na primeira semana de governo, ainda sem boa parte dos ministros empossados. Feita a intervenção nas Forças de Segurança do DF, a cargo de Ricardo Capelli, começou a frenética reação no começo da noite do dia 8 de janeiro para a evacuação dos prédios dos Três Poderes e a detenção de mais de 1.300 baderneiros. A exitosa reação demoveu governadores de ficar em cima do muro (sobretudo a ala bolsonarista), aguardando os fatos, para ver de que lado do muro iam ficar. E cortou as possibilidades de desídia nas Forças Armadas e nos estados.

A simbologia do desfile de mãos dadas dos presidentes dos Três Poderes, e a presença de todos os governadores, no dia 9 de janeiro de 2023, em Brasília, para celebrar o Estado Democrático de Direito, merecem ser sempre recordadas. Mas, um ano depois, a nação espera que os verdadeiros responsáveis pela trama e os financiadores da ida de milhares de brasileiros para Brasília sejam exemplarmente responsabilizados.

Nos Estados Unidos, na véspera do 3º aniversário da infame invasão do Capitólio pelos acólitos do então presidente Donald Trump, obstado pelo Estado Maior das Forças Armadas por sua marcha contra a maior democracia do mundo, o presidente Joe Biden (que pode novamente medir forças contra Trump em novembro, se este escapar das diversas acusações na Justiça), bateu firme no ex-presidente, acusando de usar linguagem claramente nazista.

A face dos golpistas

Em Brasília, a ausência de vários governadores aliados a Bolsonaro, eleitos na onda bolsonarista que ampliou a presença conservadora na Câmara e no Senado, onde os grandes cabos eleitorais (como se verá mais do que nunca nos pleitos municipais deste ano) são as seitas evangélicas, ativos currais eleitorais do país, mostrará quão longe está a pacificação do país.

E nada menos que 30 senadores (uma minoria significativa entre os 81 membros da Câmara Alta) aprovaram uma moção contra a celebração de amanhã (8) na Praça dos Três Poderes. Seria mais legítimo que escancarassem a defesa do fracassado golpe. Por ironia do destino, além do filho 01, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), um dos líderes do manifesto é o atual senador Rogério Marinho (PL-RN), que foi ministro da Integração Regional de Bolsonaro.

Seu avô, o ex-deputado federal Djalma Marinho (que fez carreira pela UDN e, após a extinção dos partidos no golpe militar de 1964, que apoiou, se filiou à Arena e depois ao PDS) era presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, no governo do marechal Costa e Silva. Pois Djalma Marinho, fiel aos princípios democráticos, recusou, na primeira semana de dezembro, após levar três meses no exame do pedido de licença solicitado pelo ministro da Justiça, Gama e Silva, o pedido para processar, junto ao Supremo Tribunal Federal, o deputado Márcio Moreira Alves (MDB-RJ).

Em discurso no “Pinga-fogo” da Câmara, em 2 de setembro de 1968, às vésperas do 7 de setembro, o deputado conclamou “as jovens a não namorar nem dançar com oficiais e cadetes”, em demonstração de repúdio à crescente militarização do país. A ala radical do governo pediu a cassação do mandato.

Quando o atalho de um processo junto ao STF foi recusado solenemente por Djalma Marinho, em 2 de dezembro de 1968, o presidente da Comissão de Constituição e Justiça, ao invocar Calderón de La Barca, proclamou: "Ao rei tudo, menos a honra". Passaram-se menos de duas semanas (Djalma Marinho esperava que o recesso parlamentar de dezembro, seguido das férias de janeiro, faria o assunto esfriar até 1º de fevereiro, com o retorno dos trabalhos legislativos) para a ala mais radical da caserna, encarnada por Costa e Silva e pelo ministro da Justiça, Gama e Silva, prevalecer. O resultado foi a fatídica reunião ministerial de 13 de dezembro de 1968 (uma sexta-feira, dia do Marinheiro e de Santa Luzia, protetora dos cegos), que mergulhou o país na longa noite da Ditadura do AI-5.

Márcio Moreira Alves foi dos primeiros a serem cassados. O governo fechou o Congresso e suspendeu as garantias individuais, como o “habeas-corpus” para crimes políticos e contra a segurança nacional.

Não contente, pouco mais de um mês depois, em 16 de janeiro de 1969, cassou o mandato de três ministros do Supremo Tribunal Federal, que então tinha 15 membros - antecipando a aposentadoria compulsória dos ministros Victor Nunes Leal - o vice-presidente da Corte -, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Em solidariedade aos cassados, renunciaram em seguida o então presidente - ministro Gonçalves de Oliveira, que tomara posse há pouco mais de um mês - e o decano da Corte, ministro Lafayette de Andrade, e o STF ficou reduzido a 11 membros. Pouco depois, renunciou o ministro Aliomar Baleeiro (político da UDN).

Em todo o governo Bolsonaro – ecoando o que disse o filho 03 na campanha de 2018, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), de que bastava "um cabo e um jipe para fechar o STF” (o que jamais ocorreu, nem sob o AI-5) –, o presidente vivia investindo contra o Supremo Tribunal Federal, o guardião da Constituição.

Água mole em pedra dita dura. O alvo principal dos discursos de ódio contra o Supremo era o ministro Alexandre de Moraes, que centralizou os inquéritos das “fake News” e das investidas contra as urnas eletrônicas, na condição de presidente do Tribunal Superior Eleitoral. A palavra de ordem da celebração golpista da “Festa da Selma” contra a Democracia era “enforcar o careca na Praça dos Três Poderes”. Moraes foi designado por Rosa Weber o condutor dos inquéritos sobre o 8 de janeiro de 2023. Isso não pode ficar impune.

Por tudo o que ocorreu, não será o museu que defenderá a democracia.