COISAS DA POLÍTICA

O Natal vem aí e o país segue rachado

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Publicado em 10/12/2023 às 07:23

Alterado em 10/12/2023 às 08:51

Lula e Bolsonaro na disputa pela liderança das casas legislativas Arquivo

Às vésperas do Natal, as pesquisas de opinião pública revelam que o país continua rachado. Os encontros das famílias, na noite do dia 24 de dezembro e no almoço do Natal, tendem a ter ânimos menos agitados do que em 2022. Na ocasião, alguns nem compareceram aos eventos de confraternização porque estavam acampados diante dos quarteis militares. Esperavam o Messias (uma palavra de ordem do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro), derrotado por 2,1 milhões de votos de vantagem para Lula no segundo turno em 30 de outubro. Como se sabe, após ter fracassadas suas iniciativas de desacreditar as urnas eleitorais, Bolsonaro não reconheceu publicamente a derrota. Recluso em novembro e dezembro, para evitar passar a faixa a Luiz Inácio Lula da Silva, embarcou para Orlando (Flórida) em 30 de dezembro. Oficialmente, estava lá para descanso e orientar os ajudantes de ordens (cujas viagens são bancadas pelo Tesouro Nacional) a monetizar joias e relógios recebidos enquanto exerceu a Presidência da República, que considerava como propriedades privadas, inclusive sem declaração de entrada no país à Receita Federal. Os fatos mostraram que agia na surdina. Insuflava à distância as ações de 8 de janeiro pelas quais os mais radicais bolsonaristas acreditaram que estavam tomando o Poder ao depredar as sedes do Executivo (Palácio do Planalto), do Legislativo (as dependências da Câmara e do Senado, no Congresso) e do Judiciário (na sede do Supremo Tribunal Federal).

A temperatura política esfriou um pouco – o que contrabalançou o aumento do aquecimento climático desdenhado pelos terraplanistas e outros negacionistas. Mas o radicalismo continua presente e pode se manifestar nas duas últimas semanas de atividade do Congresso antes do recesso de Natal e Ano Novo (de 23 de dezembro em diante, que se soma às férias de janeiro); o Legislativo só retoma as atividades em 1º de fevereiro. Assim, além das sabatinas, no Senado, das indicações do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, para a cadeira do STF vaga desde o começo de outubro, pela aposentadoria da ex-ministra Rosa Weber, e de Paulo Gonet, como novo Procurador Geral da República (o mandato de Augusto Aras venceu em 26 de setembro), estão em pauta as votações da tributação das apostas esportivas, do Orçamento Geral da União para 2024 e da Reforma Tributária. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ainda precisa apresentar uma alternativa à reoneração dos encargos sociais de diversos setores da economia, vetada pelo presidente Lula, por gerar rombo fiscal de R$ 177 bilhões.

Meu colega jornalista Ricardo Noblat, em seu blog no site “Metrópoles”, chega à conclusão, cotejando os dados da aprovação e rejeição ao presidente Lula nas pesquisas do Ipec e do Datafolha com o resultado da última eleição, diz que ele venceria hoje com 7 milhões de votos de vantagem. Considero, caro Noblat, precipitada a conclusão. Essa foi a vantagem direta de Lula sobre Bolsonaro no primeiro turno, em 3 de outubro. Sem Simone Tebet e Ciro Gomes no páreo, Bolsonaro reduziu a distância no segundo turno. A reta final do inquérito da Polícia Federal e do Tribunal Superior Eleitoral sobre a ação da Polícia Rodoviária Federal, comandada por Sidney Vasques, com “blitz” rigorosas nas estradas (concentradas no Nordeste, onde Lula teve maior vantagem no primeiro turno), pode esclarecer sua influência real na queda da diferença.

Assuntos desaconselhados

Um tema sensível segue sendo a guerra entre Israel e Hamas. O presidente Lula, na ânsia de retomar o protagonismo do Brasil nos fóruns internacionais, tentou mediar a suspensão dos ataques da Rússia na Ucrânia invadida, cujas consequências foi o encarecimento dos alimentos e combustíveis para as nações pobres, distante do problema. No exercício mensal da presidência brasileira do Conselho de Segurança da ONU, propôs um armistício nas retaliações de Israel aos ataques terroristas do Hamas, em 7 de outubro. O veto dos Estados Unidos (o presidente Joe Biden queria tirar partido político para sua campanha à reeleição, em 2024, com as gestões de paz que ia iniciar no Oriente) impediu a validade da proposta brasileira. A ideia de um cessar fogo humanitário ficou circulando na ONU. Três semanas depois e após uma escalada de mais de 15 mil mortes, a maioria de mulheres e crianças na faixa de Gaza, os EUA aceitaram a proposta de Malta para um cessar fogo temporário. Durou sete dias a troca de prisioneiros dos dois lados e a remoção de mortos e feridos. Depois, a rotina de 78 anos de conflito foi retomada.

De toda forma, há muitos temas mais amenos para a confraternização da família. Aconselho deixar de lado o futebol. Até lá saberemos se o Fluminense se junta ao seleto grupo das equipes brasileiras que conquistaram o mundial. Quando a decisão era no Japão, entre o campeão europeu e o sul-americano, era mais comum um brasileiro campeão. Depois que a Fifa organizou semifinais com seis participantes, só os europeus venceram. Tivemos fiascos.

Espero que flamenguistas, botafoguenses, vascaínos, palmeirenses, corintianos, são-paulinos e santistas já tenham virado a página das tristezas e comemorações, deixando as provocações para o espírito alegre de outrora.

Dois vizinhos trapalhões

Os esforços diplomáticos do Brasil ganharam novo eco na comunidade internacional. Sem grandes vitórias, por enquanto. O BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) aprovou a proposta de ampliação de mais nove membros. Uma das intenções de Lula era amparar a Argentina, em crise, com acesso aos créditos do Novo Banco de Desenvolvimento (o Bird dos BRICS). Mas o candidato apoiado pelo presidente argentino Alberto Fernández perdeu para Javier Milei. O presidente da ultradireita toma posse neste domingo e Lula, precavido, após tantos insultos em campanha e ameaças de desligamento dos vizinhos do Mercosul, não irá a Buenos Aires. Milei convidou o ex-presidente Bolsonaro, que se fará acompanhar por ruidosa comitiva.

Se não bastasse o risco de racha no Mercosul, o acordo com a União Europeia, que rola desde 1999 (governo FHC), e que seria o coroamento da gestão do Brasil na presidência do Mercosul, foi rejeitado por Emmanuel Macron, da França. A bola e o destino do Mercosul estão nas mãos de Milei.

E, para azedar de vez o clima, um convidado bem trapalhão, que estava meio que afastado dos fóruns sul-americanos, o presidente Nicolás Maduro, que se eterniza no poder da Venezuela por artimanhas eleitoreiras e pressões sobre a Justiça, depois de ser reintegrado ao Fórum da Celac (encontro da América Latina e Caribe) que o Brasil promoveu em maio, com defesa da “democracia relativa”, acaba de ensaiar um aventura eleitoreira-militar na fronteira norte de Roraima, com a declaração de anexação do rico território de Essequibo, onde há enormes jazidas de petróleo, gás e minérios nobres.

Preparando uma onda popular para contornar sua rejeição eleitoral no pleito previsto para 2024, Nicolás Maduro criou plebiscito para o povo venezuelano decidir se concordava em anexar Essequibo ao seu território. Como a produção de petróleo da Venezuela definhou desde que Hugo Chaves aparelhou a PDVESA de militares amigos e expulsou as empresas estrangeiras do país, dono das maiores reservas de petróleo do mundo, as prospecções se mudaram para o mar e o território terrestre da vizinha Guiana (ex-Inglesa).

A Exxon-Mobil, dos EUA, maior companhia de petróleo do mundo, que explora petróleo na Guiana e estava se preparando para voltar a atuar na Venezuela (o mercado busca novas fontes fósseis após a crise da invasão da Rússia à Ucrânia), aproveitando a suspensão temporária de sanções do presidente Biden à Venezuela, pediu apoio às forças armadas dos EUA contra a pretensa rapinagem de Maduro. Arvorando-se de senhor do território (cujo acesso depende de transpor a fronteira do Brasil, em Roraima), Maduro alardeia que vai emitir licenças de exploração de O&G no território alheio da Guiana. A disputa pelo domínio de Essequibo (2/3 da Guiana, que ficou independente da Inglaterra nos anos 60) rola nos tribunais internacionais desde fins do século 19. Era uma disputa entre Inglaterra e a recém-independente Venezuela (da coroa espanhola). Decisões recentes mantiveram a posse da Guiana.

Mas quem irá conter Maduro em sua caminhada para um novo mandato? Só Lula, que ressuscitou diplomaticamente a criatura, poderia dissuadi-lo. Na cúpula do Mercosul, mandou o recado de que a América do Sul quer paz (será que Nicolás Maduro entendeu?). Pelo sim, pelo não, nesta quarta-feira, 13, o Brasil faz leilão de áreas de petróleo no pré-sal. Será a oportunidade de avaliar se o clima de insegurança política e jurídica criado pela Venezuela e pelos abalos do Mercosul estão fazendo marolas nas bacias de Santos e de Campos.

Nossa guerra particular

A preocupação com as iniciativas oficiais dos nossos vizinhos de fronteira não deve deixar de lado uma questão bem mais séria. O tráfico diário e corriqueiro de armas, drogas em escambo com o contrabando de recursos naturais de nossa floresta através das fronteiras com a Colômbia, Peru, Bolívia e o Paraguai, deveria merecer atenção redobrada. Sua enorme movimentação financeira alimenta a guerra diária do narcotráfico que, após uso inicial do Brasil como rota de “exportação” para a África e a Europa, transformou as principais cidades brasileiras no segundo mais importante mercado consumidor do mundo. O desmantelamento, na semana passada, pela Polícia Federal, de uma rede que contrabandeava, a partir do Paraguai, armas de grosso calibre vindas da Europa Central (com as numerações devidamente raspadas em oficinas paraguaias), dá pistas para a dimensão do megaproblema, que pede vigilância redobrada das forças armadas na nossa vasta fronteira oeste.

Segundo a PF, que investiga, desde 2020, a atuação do grupo chefiado pelo argentino Diego Hernan Dirísio, que operava do Paraguai e continua foragido, o grupo vendeu mais de 43 mil armas às principais facções do narcotráfico brasileiro, movimentando mais de R$ 1,2 bilhão. Para se ver a extensão do problema que gera a onda de crimes nas grandes cidades brasileiras, além de armas desviadas do Exército e demais forças armadas, das PMs estaduais, e os desvios feitos pelos CACs incentivados no governo Bolsonaro, com a intenção de ter uma milícia de reserva para apoio em golpe militar, durante toda a investigação em dez estados brasileiros foram apreendidas apenas 659 armas (sendo 67 nesta última operação) nos estados Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia e Ceará. A exclusão de outros 16 estados e o Distrito Federal não significa garantia de paz. Apenas que o foco da PF não chegou lá. As mais de 42 mil armas vendidas pelo grupo e não capturadas seguem causando mortes e ampliando o poder do narcotráfico pelo país afora.

A marca da corrupção

Tomo emprestado o nome do filme de Orson Welles “A Marca da Maldade”, que descobri, nesta sexta-feira, ter sido lançado nos Estados Unidos em 31 de janeiro de 1958, quando fazia oito anos e era ainda um menino inocente, para abordar a extensão dos danos da corrupção no Brasil e abaixo (e acima) da linha do Equador. O filme tinha como astros principais Charlton Heston e Janet Leigh, com participação ainda de Marlene Dietrich. Na vida real, a marca da corrupção é estrelada dia e noite por agentes públicos que dilapidam o Erário ou se deixam levar pela corrupção de agentes privados, fazendo vista grossa a irregularidades que deveriam reprimir.

Duas notícias desta semana chamaram particular atenção. Uma diz que o Tribunal Penal Federal da Suíça determinou a repatriação para o Brasil de US$ 16,3 milhões (R$ 78,5 milhões ao câmbio atual) que estavam bloqueados em diversas contas bancárias do ex-prefeito de São Paulo e ex-deputado federal, Paulo Salim Maluf. Maluf foi acusado de desvios nas obras e desapropriações que deram origem à avenida Águas Espraiadas, quando foi prefeito de 1993 e 1996. Condenado em maio de 2017, pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, a pena de 7 anos 9 meses e 10 dias, pelas práticas de lavagem de dinheiro, Paulo Maluf perdeu o mandato de deputado federal e ainda foi multado em R$ 1,3 milhão. Ele chegou a ficar preso na penitenciária da Papuda, em Brasília, de dezembro de 2017 a março de 2018, quando obteve liberdade condicional. Em maio do ano passado, foi um dos beneficiados pelo indulto do ex-presidente Jair Bolsonaro e ficou em liberdade. A repatriação do dinheiro fora solicitada pelo Ministério Público Federal e pela Advocacia Geral da União. A sentença do tribunal suíço é de 19 de setembro, mas os resultados das tratativas só foram divulgados na quinta-feira, 7 de dezembro, pela AGU. Espera-se que o caso Maluf – que era um símbolo da impunidade - sirva de exemplo a gestores públicos pelo país afora.

O segundo caso diz respeito ao divórcio judicial de um casal de ex-fiscais da Fazenda do Estado de São Paulo, que quer repartir, com acusações mútuas, um patrimônio avaliado em R$ 51 milhões. O fiscal se aposentou em 2015, depois de um inquérito sobre corrupção dos agentes fiscais paulistas. A mulher, só em 2019. Ainda relativamente jovens, o casal amealhou patrimônio que inclui uma mansão no Parque do Ibirapuera, apartamentos em São Paulo e a sociedade numa enorme casa de veraneio numa ilha de Angra dos Reis (RJ), depósitos e aplicações financeiros, além de veículos, entre os quais está uma enorme lancha da qual desfrutavam nas horas de lazer na Costa Verde. Aposentados, montaram empresas para atuar na advocacia empresarial. Por coincidência, além de um sócio que é ex-agente da Receita Federal, o terceiro sócio é um ex-juiz do Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) de São Paulo. Um dos principais negócios do escritório são os casos tributários, na sua maior parte (além da Receita Federal), contra a própria Fazenda de São Paulo.

A milícia faz escola

Em escala menor, mas não menos importante e deseducativa, é a ação das milícias que passam a ser integradas por ex-policiais civis e da PM, além de bombeiros militares. Sempre estranhei a enorme procura pelos concursos para ingresso na Polícia Civil, na PM, nos Bombeiros (dos estados) ou até na Guarda Municipal (das prefeituras). Na Polícia Federal (normal ou rodoviária), os salários são proporcionais ao poder. Mas assim como na Receita Federal e na Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, os agentes do Estado querem aumentos exorbitantes. Agora mesmo o Ministério da Fazenda vetou os pedidos. Mas não bastam os altos salários. Há um movimento na surdina para obterem participação no valor arrecadado para o Erário. Ou seja, honorários recebidos pelos advogados que atuam em causas do lado privado. Além de altos salários, querem prêmios pela execução do dever cumprido.

Vale lembrar que o agente público que faz corpo mole no cumprimento do seu dever incorre no crime de concussão (cujo passo adiante é a corrupção passiva). E quem não cumpre o dever diante de um crime está sujeito ao crime de prevaricação. Aparentemente, quem entra em um concurso público está em busca de uma carreira estável no serviço público (sem os sobressaltos das demissões no setor privado). Esse é o ideal da maioria. Entretanto, as práticas desonestas que os novatos percebem nos veteranos, que ostentam, tendem a desvirtuar ideais. Criar milícias ou integrar seus feudos viram alvo de muitos. A ética dá lugar à cobiça, e o primeiro lesado é o Erário. Mas, no fundo, os lesados somos nós contribuintes, cumpridores de nossos deveres, que ainda ficamos privados dos serviços do Estado pelo desvio das receitas.

Reforma ou justiça tributária?

A reforma tributária, com a simplificação da pilha de impostos (em todas as esferas administrativas – União, estados e Municípios) tende a diminuir o espaço de manobra para os que se valem da “estrela de xerife” para intimidar o contribuinte. Mas é preciso deixar claro. Quanto mais a tributação estiver atrelada à renda do contribuinte e a seu patrimônio resultante (e não à sua estrutura de consumo), mais próximo caminharemos para a justiça tributária.

No sistema atual, quem paga a conta mesmo é o consumidor. Os impostos, reclamados pelos comerciantes, prestadores de serviços e industriais, já estão embutidos, junto com margem de lucro, nos preços dos produtos e serviços, pagos pelo consumidor. Chega a ser farisaísmo um comerciante encher a boca e reclamar que paga até 47% de carga tributária. Como toda a cadeia de produção e serviços, incluindo o rico sistema financeiro, ele só recolhe a fração de impostos (quando não sonega), a parte de impostos que já pagamos.

Por isso, a verdadeira justiça fiscal será feita quando avançar no país a cobrança de tributos sobre a renda e patrimônio, que não chega 33%, o inverso da Europa e países da OCDE, onde supera os 70%. Aqui, o grosso (mais de 65%) recai sobre o consumo. Lá, além de estar discriminado o que é imposto para o consumidor, a carga tributária sobre o consumo é inferior a 30% do total.