COISAS DA POLÍTICA

Um olho no gato e outro no peixe

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Publicado em 08/10/2023 às 06:12

Alterado em 15/10/2023 às 11:22

O presidente Lula Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Em política não se pode dormir. Deve-se sempre manter um dos olhos abertos. Mas, de preferência, para garantia total, os dois vigilantes: um no peixe e o outro no gato, para que os esforços não sejam em vão. O presidente Lula, recolhido ao Palácio da Alvorada para a recuperação da delicada cirurgia a prótese do quadril, teve de desligar a turbina dos frenéticos voos internacionais para a retomada do protagonismo do Brasil na cena mundial. A percepção, na reclusão do Palácio, é de que fatos extraordinários se sucedem. No Brasil e no exterior (como no novo foco de guerra entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza). Quando não é a natureza aprontado chuvas em excesso no Sul do vasto território brasileiro, é a seca, causada pelo fenômeno El Nino, que reduz as geleiras nos picos Andinos e a vazão dos rios formadores da Bacia Amazônica. Enquanto isso, os gatos estão dispostos a Dar o bote para pegar o peixe do poder político, se os governantes não abrem o olho a tempo.

Quem duvidava dos impactos dos fenômenos climáticos, para os quais as ações predatórias do Homem só fazem acelerar o aquecimento global, os empresários mais renitentes do agronegócio - refratário ao cumprimento mínimo de compromissos pela redução de emissões de gás carbônico na atmosfera, como reagiu a bancada do agro no Congresso - podem colher, breve, uma surpresa. O IBGE divulga nesta semana o IPCA de setembro (estimado em torno de 0,32%, o que situaria a inflação em 12 meses em 5,2%) e as primeiras previsões para a safra de grãos de 2023-24. Após as colheitas recordes da safra 2022-23, que ajudaram a derrubar os preços dos alimentos este ano, há grande apreensão entre os agrônomos da Embrapa quanto ao desempenho da safra recém-plantada. Uma perda das lavouras reduziria a renda no campo e comprimiria o PIB em 2024, bem como elevaria a inflação de alimentos depois da trégua de 2023. Os fatos estão interligados no clima e não dá para desdenhar disso. Milionárias máquinas compradas nos últimos anos com créditos fartos do BNDES podem ficar ociosas se não houver produção a ser colhida. E uma onda de inadimplência pode eclodir no meio rural. O clima não é para principiantes, como agem os representantes do agro no Congresso.

Na cena externa, a catequese de Lula para que os ecos da Paz substituam os gritos de guerra no conflito gerado pela invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin começam a ser ouvidos com mais atenção na Europa e nos Estados Unidos. Os custos de sustentar o governo Zelensky estão muito altos para todos. Em especial para os países mais pobres da América do Sul, Caribe, África e Ásia, que só sofrem as consequências da alta dos alimentos e dos combustíveis, causada pelas retaliações à Rússia. No mundo sob ameaça de recessão, os custos da paz são bem mais vantajosos que os da guerra. Mas o Nobel da Paz foi para a iraniana Narges Mohammadi, ativista defensora dos direitos políticos, sobretudo das mulheres na terra dos aiatolás. Lula, abertamente, não pleiteia o prêmio (trabalho de bastidores dos assessores para 2024). Ganharia mais como governante do Brasil, com as bonanças da Paz.

Mas os tambores da guerra e do belicismo de Donald Trump estão mais ativos do que nunca nos Estados Unidos. Líder nas pesquisas e candidatíssimo a voltar a presidir a maior nação do mundo em 2025, apesar do cerco da Justiça a vários de seus crimes, o ex-presidente está manobrando contra os adversários até para derrubar o presidente da Câmara, o Republicano Kevin McCarthy. Trump trabalha na surdina para tirar do páreo um deputado da Flórida, ligado a seu maior adversário, o atual governador Ron De Santis. E, a despeito da infame manobra para instigar seus apoiadores, em 6 de janeiro de 2021, a invadir o Capitólio e impedir a diplomação de Joe Biden e Kamala Harris, sonha ele próprio ser indicado pelos Republicanos para presidir a Câmara. Lá, um cidadão pode ser indicado mesmo não sendo deputado. O que ele gostaria é de, com o poder da maioria republicana, criar leis que anulassem boa parte dos processos que poderiam levá-lo à cadeia, mas não o impedem de disputar a presidência em novembro do ano que vem.

Se, nos Estados Unidos, a direita está chegando a este ponto, é bom ficar de olho aberto no Brasil. O Congresso eleito com forte viés conservador, na esteira dos votos de Jair Bolsonaro no 1º turno, está disposto a seguir os passos de Trump, como se viu no 8 de janeiro. E a direita, insuflada pelo furor evangélico, está em ebulição. Cada vez mais conservadora, como se viu na eleição dos representantes para os Conselhos Tutelares, onde houve um “tratoraço”. E o presidente da Câmara, Arthur Lira, que, momentaneamente, refreou os ímpetos de “morder” agências do Estado, respeitando o resguardo de Lula, que não pode receber visitas, já marcou o fim da trégua para 24 de outubro, quando seriam votadas as propostas de tributação dos fundos exclusivos de milionários no Brasil e dos fundos “off-shores” de milionários brasileiros no exterior.

Até lá, Lira pode poupar Lira das pressões sobre a entrega da Caixa Econômica Federal, com “porteira fechada”, para os membros do Centrão e na Codevasf, mas não os ministros de Lula que cuidam da articulação política. Teoricamente, a companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco, estendeu seus tentáculos para além dos estados onde tem influência direta (ampliada com a transposição das águas do rio de integração nacional para o semiárido do Nordeste). Mas a Codevasf fez milagres. Antes mesmo de sair do papel a ideia de reforço da vazão do São Francisco com a transposição de águas do Rio Araguaia, os tentáculos da Codevasf chegaram, pela bacia do Araguaia, ao Maranhão e ao Piauí, que não estão fora do alcance da transposição do São Francisco.

Lula que se prepare: ele pediu trégua de até três semanas. Mas nem a Câmara nem o Senado baixaram as armas e muito menos o lado mais conservador do Congresso, que resolveu investir contra o Supremo Tribunal Federal, aceitaram a trégua. Apenas aguardam que o presidente volte a dar expediente no Palácio do Planalto para completar o assalto iniciado no 8 de janeiro.

Uma rajada de bala*

O monstruoso crime que tirou a vida de três médicos ortopedistas de São Paulo, que estavam no Rio para um Congresso Médico Internacional no Hotel Windsor, na Barra, foi uma rajada de tiros aos pés do Cristo Redentor. A cidade do Rio de Janeiro tentava retomar seu protagonismo no turismo nacional e internacional com a reativação do Aeroporto Internacional do Galeão/Tom Jobim. O Rio sempre foi a porta de entrada dos voos internacionais ao Brasil. Nas últimas três décadas, por desleixo de nós, cariocas, perdemos vários atrativos que ainda movimentavam a vida econômica da 2ª maior cidade do país, após deixar de ser capital federal, em 1960.

Por ser uma cidade administrativa, o Rio de Janeiro nunca se preocupou em atrair indústrias com escala. O Rio se contentava em ser o centro administrativo-financeiro e a sede das maiores estatais do país. A mudança do centro financeiro para São Paulo, em 1994, que custou milhares de empregos e esvaziou a noite do Rio, teve como justificativa a falta de segurança aos executivos do mercado financeiro. O Citibank contribuiu para esvaziar o Galeão. Alarmou geral com um folheto que orientava seus executivos a usar o Santos Dumont, para evitar sequestros na Linha Vermelha, na saída do Tom Jobim ao Centro e à Zona Sul. Grandes congressos e feiras de negócios foram aportar em São Paulo. A beleza do Rio ainda atraía congressos médicos e nas áreas de tecnologia e recursos humanos. Será difícil, após as execuções e os desdobramentos macabros do dia seguinte, quando os supostos executores foram justificados por milicianos por terem exposto as facções criminosas às investigações mais diretas e profissionais da polícia, incluindo a PF.

O 'glamour' da violência

Este horroroso subtítulo em português foi dado no Brasil a uma das obras-primas da violência no cinema americano, do grande diretor Arthur Penn: “Bonnie&Clide”. A produção, assinada por Warren Beatty, irmão de Shirley Maclaine, que vive Clide Barrow, enquanto sua então namorada, Faye Dunaway encarna Bonnie (foram muitas até se casar com Annete Bening), é uma das pérolas da cinematografia de Penn sobre a gênese da violência na vida americana. Beatty tinha estrelado outro filme de Penn, em 1965, “Mikey One”, que aqui levou o título de “Acosado” (meio ao estilo de “A Bout de Souffle”, dirigido por Jean-Luc Godard, em 1960, com Jean Paul Belmondo e a linda Jean Seberg, aqui chamado de “O Acossado”). Aos que não ligam o nome à pessoa, o 1º grande filme de Penn levou ao estrelato o grande Paul Newman. No “faroeste” “Um de Nós Morrerá”, ele encarna a origem “fora da lei” “Billy The Kid”. Do longo cartel de Penn faz parte “A Caçada Humana”, de 1966, com Marlon Brando. Ambos voltariam a trabalhar juntos dez anos depois em “Duelo de Gigantes”. Antes, Penn dirigiu Dustin Hoffman em “Pequeno Grande Homem”, que traça um retrato cruel do extermínio dos índios na marcha para o Oeste dos séculos XVIII e XIX.

Recorro a Penn porque ele ia fundo nas causas da violência da sociedade americana. Na época, muitos já preferiam a violência espetaculosa dos filmes de western de Sam Pekinpah, quando o sangue que borbulhava dos feridos à bala tomava a tela. Muitas das restrições que faço a Quentin Tarantino vêm justamente do excesso de violência explícita e gratuita que jorra em seus filmes. Parecem os programas policiais da TV. Programas jornalísticos (que avançam pelas rádios) exploram cômodos clichês de notícias com um eterno desfilar de B.Os. (Boletins de Ocorrência no jargão da polícia). Esses tipos de programas, em vez de tentar desvendar o submundo do crime organizado, do qual o jogo do bicho e todas as formas de contravenção, que acabam sendo ignorados por venais delegados e PMs, têm à frente os pastores da Record e os “Datenas” da vida, que não se cansam de bater em “cachorro morto”.

Quem não se lembra de “O Povo da TV”, onde havia “linchamento” quase diário de bandidos e louvação de policiais valentões – na maioria dos casos integrantes da “banda podre” da polícia - mancomunados com bicheiros? Dois políticos fizeram carreiras nestes “tribunais”: o jovem advogado Roberto Jefferson, como prestador de serviços jurisdicionais ao vivo, antes da descoberta da internet; e o detetive Sivuca? Integrante da famigerada “Scuderie Detetive Le Cocq”, policial morto em agosto de 1964 pelo bandido “Cara de Cavalo”, ‘justiçado’ poucas semanas depois, com 52 tiros, em Cabo Frio. Sivuca bradava: “Bandido bom é bandido morto”.

Até hoje, a classe média e as classes menos favorecidas emendam, “é isso mesmo, bandido tem que morrer” e não entendem que a máxima é um salvo conduto à polícia (civil ou militar) ser juiz e algoz da pena de morte que não há no país. Para a banda podre da polícia, o bom bandido é o que, morto, jamais irá contar, perante o Juiz, fatos do envolvimento das milícias e da parte podre da polícia com o crime organizado. Do qual a banda podre é sócia, na prática.

Quem segue o dinheiro?

Elliot Ness conseguiu prender o gangster Al Capone porque, como era agente da Receita Federal dos Estados Unidos, escarafunchou a contabilidade do maior bandido de Chicago e responsável por burlar a “Lei Seca” contrabandeando bebidas do Canadá. Se dependesse da venal polícia de Chicago e do estado de Illinois, ia esperar mais tempo que o sargento Garcia para prender o Zorro.

Se examinarmos a gênese da corrupção que se alastrou pelas forças policiais e parte dos territórios do Rio, veremos que, lá atrás, houve um grande acordo no regime militar com os bicheiros, que dominavam o submundo da contravenção no Rio. Presos da Ilha Grande, no auge do regime militar, no final dos anos 60, depois dos sequestros dos embaixadores da Alemanha e dos Estados Unidos e do Cônsul da Suíça no Rio de Janeiro, algumas autoridades do regime perceberam que precisavam se infiltrar mais no submundo para colher informações sobre agentes que tramavam contra o governo. Ninguém melhor que os bicheiros de confiança, com as ramificações de sua cadeia nos bairros da cidade e da Baixada Fluminense poderia ser melhor fonte de informações de movimentos suspeitos.

Assim, Castor de Andrade, mais conhecido como “capo di tutti capi” do jogo do bicho, virou figurinha carimbada na sociedade. Ele que já dirigia, com mão de ferro, o Bangu e a Mocidade Independente de Padre Miguel, vizinha a Bangu, passou a ter salvo-conduto na alta roda carioca. A filha de um dos seus sócios na Metalúrgica Castor casou-se com Jonny Figueiredo, filho do então chefe do SNI, João Figueiredo, que seria o último general-presidente.

Como os “tribunais” do crime, veio a ordem de liquidar quem matou por engano (morto não fala). Ainda não se sabe se foi da milícia, formada por ex-PMs, polícias civis e ex-bombeiros, que cobra taxas de segurança, do gato da Light, do gás, da água e do gatoNet, além dos serviços de vans, ou dos chefões do tráfico. Não me espanto com esse “modus operandi” do “crime e castigo”. A fusão da Guanabara com o antigo Estado do RJ piorou tudo (no TJ e na polícia). Maus PMs e policiais que serviam na cidade do Rio de Janeiro, quando deslocados a pacatas cidades do interior, deram nova escala ao crime.

No governo Sarney, quando era ministro do Exército, o poderoso general Leônidas Pires Gonçalves (falecido em 2015), o todo poderoso diretor geral das Organizações Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, estava recebendo para jantar em sua casa no alto do Joá um grupo de amigos com as esposas. Entre eles estava Miguel Pires Gonçalves, filho do general e vice-presidente financeiro das Organizações Globo. Pois no meio do jantar, a casa é invadida por quatro bandidos fortemente armados. Todos são obrigados a deitar de cara no chão sob mira de escopetas e fuzis automáticos, enquanto a casa era saqueada. Felizmente, ninguém saiu ferido ou sofreu abusos.

Mas, em vez de acionar a Polícia (civil e militar), ou até os investigadores da Polícia do Exército, passado o trauma imediato, Boni ligou para seu grande parceiro, o patrono da Mocidade, escola onde desfilava e tinha vários colaboradores do departamento de cenografia da Globo, relatando o ocorrido. Castor prometeu pôr seus homens em campo para resolver o caso. Dois dias depois, três dos quatro invasores foram encontrados mortos.

Em retribuição ao “gesto” do amigo, tão logo Castor ganhou (anos depois) um “habeas-corpus” para aparecer no Sambódromo, após a cumprir alguns dias de cadeia na prisão coletiva dos bicheiros, determinada, em pleno Tribunal de Justiça do RJ, pela juíza Denise Frossard, a Globo abriu os microfones no desfile da Mocidade para o bicheiro desabafar contra a juíza. O “JORNAL DO BRASIL” fez candentes editoriais em defesa da juíza Denise Frossard e contra Boni e a Globo. Morreu Castor e o culto aos bicheiros, como Anísio, da Beija Flor, e Jayder Soares, da Grande Rio, ou Petrus Calil, da Viradouro, se sucede nas telas da Globo e demais emissoras. O “glamour” das plumas nas belas modelos nos desfiles das escolas esconde o submundo do crime e os jalecos brancos sujos de sangue.

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