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Divagações sobre o ‘munus público’

E o atual Procurador Geral da República, Augusto Aras, que se aquecia no banco de reservas para eventual indicação, caso fracassasse a ida de Mendonça à Corte, segue mantendo a tradição de sentar em cima e retardar o máximo possível, quando não ignora ou faz vista grossa, as ações contra o governo.

Publicado em 02/01/2022 às 07:58

Alterado em 02/01/2022 às 07:59

Augusto Aras Agência Senado

Qualquer cidadão tem deveres “irrenunciáveis” que deve prestar ao Estado brasileiro, sem poder abrir mão dele ou transferi-lo a outra pessoa. São: o serviço militar (é obrigatório o alistamento militar ao completar 18 anos; eventualmente o jovem pode ser dispensado por razões médicas, excesso de contingente ou outra questão), depor como testemunha, participar de júri, votar ou justificar o voto e atuar como mesário quando convocado pela Justiça Eleitoral (o próximo ano pode reservar esse encargo a alguns milhares de brasileiros e brasileiras). Quando o cidadão é investido em um cargo público ou de agente da lei, o ônus, imposto pelo serviço público (em qualquer instância), representa, ou deveria representar, a devolução, pelo Estado, em forma de cobertura de saúde, educação, segurança pública, saneamento básico, e proteção da lei e da ordem, de boa parte dos recursos que o próprio Estado arrecada do cidadão/contribuinte. O ano de 2022 lhe acrescenta mais uma função: a de eleitor dos dirigentes máximos que vão exercer o “múnus público”, como o presidente da República e os governadores, além dos fiscais de sua atuação (deputados e senadores em âmbito federal, e deputados estaduais).

Um agente da lei (seja um policial civil, um escrivão, delegado de polícia civil, um policial militar, ou da Polícia Federal, incluindo a rodoviária) não pode se omitir diante de um delito que se passa ante seus olhos. Mas, muitas vezes, o jogo se inverte e o policial, que no Brasil dá início à instrução criminal, deixa de cumprir seu “munus público”. Nestes tempos de recolhimento, diante da nova onda do novo coronavírus, transmutado em Ômicron, assisti com minha mulher, Márcia, um didático filme policial, com o sempre excelente Anthony Hopkins. “Um Crime de Mestre” nos remete, quase imediatamente, ao assustador “Hannibal”, feito por Hopkins há 20 anos. Mas o que fica logo patente adiante, como diferença (presente, aliás, em todas as séries policiais/judiciais americanas), é o fato de que, nos Estados Unidos, quem conduz os inquéritos são os representantes do Ministério Público. Eles dividem salas ou instalações em cada promotoria/delegacia policial com detetives e policiais. Mas estes vão colher provas e agem quase sempre (salvo em confrontos diretos) por orientação dos promotores. Nas terras de Tio Sam, tanto delegados (xerifes) como promotores-chefe são eleitos pela comunidade - o que obriga o eleitor a fazer, diante da urna, uma escolha extensa e mais complexa que ler um menu de restaurante japonês. O caso do filme não caiu na vala comum da impunidade, da absolvição por falta de provas diante de um juiz (ou grande júri), porque o diligente promotor público, cumprindo os deveres de defesa do “múnus público”, jamais abandonou a investigação e exigiu a colaboração da polícia.

Corte imediato de cenário para o Brasil. Morreu em outubro deste ano o procurador geral da República, Geraldo Brindeiro, que atuou à frente da PGR em todo o governo Fernando Henrique Cardoso (de 1995 ao começo de 2003). Por não ter dado andamento a dezenas ou centenas de pedidos de “impeachment” de FHC, feitos principalmente por políticos e entidades ligadas ao PT, com grande concentração de casos envolvendo a resistência ao avanço das privatizações (a telefonia foi privatizada em 1998 e várias empresas estatais foram transferidas à iniciativa privada), Brindeiro ganhou o jocoso apelido de “engavetador geral da República”. Boa parte da defesa das posições tomadas pelo governo de Fernando Henrique foi feita sob o comando do então Advogado Geral da União, Gilmar Mendes. O AGU também teve atuação decisiva para viabilizar juridicamente as medidas duras do racionamento energético de 2001. Quando o ministro Neri da Silveira atingiu a idade da aposentadoria compulsória no Supremo Tribunal Federal (75 anos), em abril de 2002, Gilmar Mendes foi brindado com a sua indicação para a Corte Suprema. O que, após um adiamento de votação no Senado, se consumou em 22 de maio, por 57 votos a favor e 15 contrários. Atingirá a idade de aposentadoria em 2030. Em dezembro, outro ex-AGU, André Mendonça, o “terrivelmente evangélico” indicado pelo presidente Jair Bolsonaro, depois de vários meses de espera, foi aprovado pelo Senado, por 47 votos a 32, contra. E o atual Procurador Geral da República, Augusto Aras, que se aquecia no banco de reservas para eventual indicação, caso fracassasse a ida de Mendonça à Corte, segue mantendo a tradição de sentar em cima e retardar o máximo possível, quando não ignora ou faz vista grossa, as ações contra o governo. Quem lembra que a sigla PGR se refere ao procurador geral da República e não do governo ou do presidente, considera que, ao protelar ações, o PGR incide em crime de prevaricação. É uma questão delicada. No limite, o agente público que está diante de um crime ou irregularidade não pode ficar omisso.

Vejamos o caso dos funcionários da Secretaria da Receita Federal. Auditores tributários e fiscais aduaneiros, indignados de terem sido preteridos na hora da repartição das verbas do Orçamento Geral da União de 2022 (generosas para turbinar as ações do governo do presidente Jair Bolsonaro (e seus aliados), em campanha pela reeleição desde janeiro de 2019, mas em queda livre nas pesquisas eleitorais diante da inação diante da pandemia e do fracasso da gestão da economia (que prometia ser o prato forte de seu governo), pela disparada do dólar (vale dizer, no outro lado da moeda, a desvalorização do real) e da inflação, centenas de profissionais colocaram os cargos de chefia em disponibilidade (mas não renunciaram à condição de fiscais e auditores, às quais chegaram após concurso público para ingresso na RFB). Se cruzassem os braços, em protesto por ter o presidente Bolsonaro privilegiado, com gordos reajustes, os policiais federais (incluindo os rodoviários e os do sistema penitenciário da União), poderiam ser acusados de crime de prevaricação, de convivência com ilícitos fiscais. Ou seja, se minguar a arrecadação por inação dos funcionários da RFB, toda a população seria prejudicada em todos os níveis de governo (a União recolhe impostos federais nos municípios e estados e depois lhes transfere (dentro do Pacto Federativo), o quinhão proporcional da cada estado e de cada município, tendo como parâmetro o tamanho das respectivas populações.

Vejamos outro caso mais grave. Poderia ser a Educação, na qual duas atitudes de corpo-mole do governo Bolsonaro, comprometem a segurança da volta às aulas (que todos anseiam retomem a normalidade em 2022). Mas, a começar pelo jardim de infância e o ensino básico, o governo, com a colaboração do ministro da Saúde, o médico cardiologista Marcelo Queiroga, retarda o quanto pode a autorização para que as crianças de cinco a 11 anos possam receber vacinas da Pfizer, já testadas e aprovadas em quase 50 países, com dosagens proporcionais ao peso dos menores. Sem a extensão da cobertura vacinal às crianças, que costumam ser assintomáticas (embora venha crescendo os casos de morte pela Covid-19), não dá para fechar o cerco à nova variante Ômicron. Desde 16 de dezembro, os técnicos da Anvisa aprovaram a vacina. Mas, o negacionismo do presidente Bolsonaro, que reluta em admitir que a vacinação é a arma mais ampla, eficaz e segura contra a proliferação do vírus (porque equivaleria à confissão de boa parte dos crimes de omissão de seu governo levantados na CPI da Covid no Senado Federal), em vez de deixar que o exame da ciência orientasse o caso, inventou uma consulta pública para que palpiteiros, apoiadores, religiosos de fancaria e robôs extravasem seus preconceitos e ignorância (por esse método bizarro, quase Bolsonaro vira “O Homem do Ano” na revista “Time”). Os editores logo identificaram a votação fraudulenta e escolheram Elon Musk, dono da Tesla e SpaceX para a capa. (lembro sempre do filme “O Planeta dos Macacos”, o 1º, com Charleston Heston, no qual o cargo de ministro da Ciência e da Religião era exercido pelo Dr. Zaius, um orangotango esclarecido, com clara noção da importância da ciência, mas tinha de negar o óbvio em nome do controle social da população símia, mais ignorante). A 2ª tropeçada foi a revogação, pelo Ministério da Educação, da exigência de que as Universidades federais exijam atestado de vacinação ou testes negativos de Covid-19 dos alunos na retomada das aulas em 2022.

É inacreditável que as autoridades brasileiras, diante da ameaça da Ômicron em todo o mundo, não redobrem os cuidados para proteger a população do país. No mês passado, Bolsonaro se insurgiu quando a Anvisa recomendou vigilância redobrada na chegada de turistas ao Brasil por via aérea, terrestre e por mar. “Querem fechar o espaço aéreo brasileiro?”, rugiu o presidente, sem medir as consequências de seu novo tique negacionista. Deus queira que eu esteja redondamente enganado, mas os primeiros sinais da falta de rigor e vigilância das autoridades federais, estaduais e municipais (após o mau exemplo da autoridade nº 1 do país) - as contaminações concentradas nas tripulações de dois navios cruzeiro que iam levar turistas brasileiros e estrangeiros para ver a queima de fogos no Rio de Janeiro, fundeados ao largo de Copacabana, e as confidências, por amigos e parentes, de multiplicação de surtos de Covid-19 após as comemorações natalinas, me fazem temer pela montagem de várias bombas-relógio prestes a explodir no começo de 2022 em vários pontos do Brasil, em especial nas cidades mais visadas pelos turistas.

É assustador o quadro que se vê nas ruas de Copacabana, Ipanema e Leblon, onde hordas de turistas (que, não se sabe vindos de que planeta, circulam aglomerados e sem máscaras espargindo vírus - da influenza ou da nova variante da Covid-19). Alguém tem de ser responsabilizado por ter faltado ao dever de exercer o “múnus público”. Bolsonaro e seu ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, não podem fugir da responsabilidade. Prefeitos e governadores também têm de agir com grande senso de responsabilidade.

Brasil X Rússia X EUA

Não sei se é notícia que conforta ou deva nos deixar de cabelo em pé (os poucos que me restam): a Rússia (oficialmente Federação Russa) teria atingido, segundo a respeitada agência de notícias Reuters, um total de 658 mil mortos pela Covid-19 e desbancado o Brasil do 2º lugar no pódio das maiores baixas. Os Estados Unidos lideram as estatísticas macabras, com 825 mil mortes até dia 31 de dezembro. A questão é que as estatísticas brasileiras deixaram de ser confiáveis desde o ataque dos hackers ao DataSus em 16 de novembro. Como foi no mesmo dia em que a Anvisa recomendava mais rigor na exigência de vacinação e de testes em turistas ao Brasil (em 10 de dezembro) e até o momento os dados não foram completamente normalizados por milhares de secretarias estaduais e municipais de saúde em todo o país, não se sabe se o Brasil fecha 2021 com mais de 620 mil ou 625 mil mortos pela Covid-19 e suas diversas variantes.

Prefiro recorrer ao site do Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde (IHME), de Seattle, que é um respeitado centro independente de pesquisa em saúde global da Universidade de Washington, no extremo Oeste dos Estados Unidos. O IHME foi o primeiro instituto a duvidar do número real de mortes pela Covid-19 no Peru. Nosso vizinho apontava oficialmente menos de 70 mil mortes (o que já era muito para sua população de 33 milhões de habitantes) no começo deste ano e as autoridades sanitárias peruanas acabaram por reconhecer que a catástrofe tinha o dobro do tamanho. No fim de 2021 as mortes somaram 202 mil (um dos maiores índices do mundo) e o IHME projeta que o Peru, que conseguiu vacinar mais de 70% de sua população com duas doses, pode fechar o 1º trimestre de 2022 com a 205 a 230 mil mortes (isso se relaxar no uso de máscaras e no avanço da vacinação completa).

O IHME informa que a Rússia tinha 625 mil mortos no último dia de 2021. Como eles são 147 milhões de habitantes, contra 214 milhões do Brasil, e estão apenas com 47,39% da população com o ciclo completo de vacinação, contra 71,3% do Brasil, sua situação é bem mais desafiadora que a do Brasil (dada a imensa extensão territorial do país que vai ficar sob a neve e o inverno rigoroso até março). Por isso, o IHME projeta que a Rússia pode contabilizar de 673 a 728 mil mortes ao fim do 1º trimestre. Se a pandemia sair do controle, o IHME admite que as baixas possam chegar a 1 milhão de mortes. Uma hecatombe para o tamanho da população.

No momento em que Vladimir Putin, o atual czar da Rússia, duela verbalmente com Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, por causa da Ucrânia, o troféu mais negativo pode ficar com o Tio Sam. Diante do fato de que apenas 58,22% dos 320 milhões de americanos receberam o ciclo completo de vacinação, as atuais 825 mil mortes podem saltar para o intervalo de 917 mil a 1,025 milhão em 31 de março de 2022. Se continuar a resistência dos republicanos e líderes religiosos ao avanço da vacinação, o número pode passar de 1,1 milhão. Ou seja, seria mais de 50% dos soldados americanos que não voltaram para casa após a 2ª Guerra Mundial.

Aparentemente (o apagão recente nas estatísticas brasileiras tirou a precisão das projeções), o Brasil perdeu o 2º posto para os russos. Segundo o IHME, o Brasil registrava 624 mil mortes na virada do ano, e seguirá atrás dos Estados Unidos e da Rússia até março, quando o IHME estima que as baixas podem chegar a 644 mil a 685 mil brasileiros. Se a situação sair de controle (no Carnaval, por exemplo, quando os erros deste fim de ano não podem se repetir) a estatística macabra pode levar 750 mil brasileiros.

As malas do ano

O saudoso e querido Arthur Xexeo criou no velho JORNAL DO BRASIL, e levou em sua bagagem quando se transferiu para O Globo, no fim do século passado, o concurso “A mala do ano”, que apontava as pessoas envolvidas com as situações mais constrangedoras. Ou seja, os causadores de “vergonha alheia”.

Sem dúvida, como em 2019 e 2020, a “Mala do Ano” seria a capa que não foi da “Time”: o presidente da República Federativa do Brasil, Jair Messias Bolsonaro. E, desde que saíram de cena, os ex-ministros Ernesto Araújo, Abraham Weintraub e Ricardo Salles, sua bagagem de mão seria, sem dúvida, ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que repete a padronagem da mala presidencial.

Entretanto, quando a gente esperava ter-se livrado do enorme baú que foi o general Eduardo Pazuello, investido da função de ministro da Saúde, de 1º de junho de 2020 a 23 de março de 2021 (no período, o país saltou de 30 mil para 300 mil mortes pela Covid-19) eis que Pazuello ressurge na meia-noite de Natal, levando um baita tombo de moto que causou fratura da clavícula. Então, ele se junta à bagagem de mão de Queiroga. Não como uma maleta, mas como aqueles cofres-baú que os motoqueiros levam na garupa de seus bólidos.

Que, em 2022, as malas, maletas e baús sejam portadoras somente de boas notícias.

 

 

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