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COISAS DA POLÍTICA

O país pária na pedra lascada

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Publicado em 01/08/2021 às 08:20

Alterado em 01/08/2021 às 08:45

Von Storch postou foto de encontro com Bolsonaro em sua conta no Instagram Foto: Reprodução/Instagram

O ministro da Economia, Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga” da campanha eleitoral de 2018, o homem que entendia "tudo de números”, considerado a face mais progressista (em matéria de política econômica liberal) do governo Bolsonaro, deu uma demonstração da falta de equilíbrio da atual administração quando os fatos e estatísticas não bateram com o discurso oficial. Depois de comemorar a criação de 309 mil novas vagas com carteira assinada no Caged de junho, o ministro reagiu mal quando lhe pediram a explicação para o fato de os números do IBGE terem apontado aumento de 400 mil pessoas procurando emprego no trimestre março-abril-maio, acumulando 14,8 milhões sem emprego. O ministro podia explicar que são dois lados da mesma moeda.

O fato de que a geração de 1,5 milhão de empregos no 1º semestre não ter reduzido a fila dos milhões de desempregados podia ser explicado didaticamente para a população e os repórteres de economia que foram lhe pedir uma palavra sobre os números do IBGE. Há, na verdade, mais de 32,9 milhões de pessoas buscando trabalho. Eram pessoas que antes da pandemia tinham emprego com carteira assinada ou trabalhavam na informalidade. Na pandemia, ficaram sem atividade regular. Boa parte foi amparada pelo Auxílio Emergencial, que chegou a atender 67,4 milhões no ano passado, incluindo os pouco mais de 17 milhões cadastrados no Bolsa Família.

Agora, quando a economia engatinha recuperação (o 1º trimestre teve alta de 1,2% no Produto Interno Bruto, mas o 2º trimestre, que seria a arrancada, frustrou as expectativas em abril e maio, calculam os departamentos econômicos de bancos e consultorias, vai ficar entre a estabilidade e avanço de 0,3%; a esperada retomada do PIB ficou para o 3º período). Os números ruins de maio do IBGE (com 86,7 milhões de pessoas ocupadas, menos que os 90,6 milhões de desocupados e fora do mercado de trabalho, que são maioria: 51,1%, contra 48,9%) os dados do mercado de trabalho, o 1º a entrar em crise e o último a sair, são o calcanhar de Aquiles na narrativa oficial. Os dados de maio refletem a meia trava na economia de abril para maio, com retomada em junho. Em vez de explicar com serenidade, o ministro da Economia, que a cada mês perde um naco do seu outrora latifúndio - agora foi a vez do desabrigado ex-ministro Secretário-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, morder um naco para chamar de seu, daí que a pasta de Trabalho e Emprego foi recriada para alojá-lo, e Onyx ainda ganhou a Previdência Social, alocada ao Ministério da Fazenda na gestão de Henrique Meirelles, no governo Temer -, foi atacar a credibilidade do IBGE, taxando-o de estar “na idade da pedra lascada”, ao fazer pesquisas de emprego por telefone.

Na pandemia da Covid, as pesquisas presenciais se tornaram inviáveis (até porque as filas do Sistema Nacional de Emprego – Sine desapareceram porque os balcões do antigo ministério do Trabalho e Emprego foram fechados por razões de saúde pública e as vagas não eram ofertadas). Para não descontinuar as séries, os técnicos do IBGE fizeram esforço, digno de elogios, e mantiveram a importante amostragem por consulta telefônica (as pesquisas voltaram a campo agora). Tentar quebrar ou desacreditar “termômetro” quando ele acusa uma febre indesejada remete a atitudes ditatoriais do ex-ministro da Fazenda e Planejamento, Delfim Netto. No governo Médici, quando Delfim era ministro da Fazenda e a inflação, calculada pela Fundação Getulio Vargas (FGV), com preços no atacado e varejo tendo a cidade do Rio de Janeiro como base, Delfim, que perseguia reduzir a inflação para 12% em 1973, reforçava o abastecimento de legumes e verduras na cidade (com remessas extras de tomate e batata, por exemplo, para segurar os índices). Atropelada pela alta do petróleo, a inflação oficial foi de 13,8%. Mas cálculos posteriores do Instituto Brasileiro de Economia, da própria FGV, apontaram para 27%, quase o dobro. Quando voltou a ser o Czar da economia no governo Figueiredo, no Planejamento, Delfim transferiu, em 1979, o cálculo da inflação para o IBGE e interferiu no índice, forçando expurgos de preços, causando a demissão de diretores do IBGE que não concordaram com a manipulação.

Guedes não ousou tanto. Com a difusão das “fakes news” pelas redes sociais, preferiu desacreditar o Instituto, enquanto era dirigido por Suzana Cordeiro Guerra, amiga de longa data de sua filha, que não recebeu verbas para fazer o Censo adiado de 2020. Mesmo assim, o IBGE manteve as pesquisas de produção agrícola, comércio, indústria e serviços que formam as Contas Nacionais Trimestrais, que dão origem ao PIB), além das estatísticas sobre emprego e renda, população (que determinam a repartição das receitas federais para estados e municípios) e outros indicadores sociais. Desacreditar o IBGE parece ser uma estratégia para que as “narrativas” econômicas e políticas do governo Bolsonaro, que quer usar a retomada do emprego como palanque eleitoral, não venham a ser desmentidas pelos fatos levantados pelas estatísticas ou arquivos dos próprios órgãos do governo.

No recente episódio da tentativa de superfaturamento das 400 milhões de doses das vacinas Covaxin do laboratório indiano Bharat Biontec, que seriam intermediadas pela Precisa Medicamentos com ágio de US$ 1 por dose, coube ao ministro Onyx, então na Secretaria-Geral, acompanhado do ex-secretário geral do Ministério da Saúde, o coronel Élcio Franco, diretamente envolvido nas tratativas denunciadas ao presidente da República, dia 18 de março, pelos irmãos Miranda, que relataram os fatos e exibiram documentos à CPI da Covid, taxarem-nos de falsos e anunciarem processos contra os irmãos – um funcionário da pasta da Saúde e outro deputado federal. Em menos de 24 horas, o ministro e o agora assessor na Secretaria Geral foram desmentidos pelo próprio Ministério da Saúde que tinha arquivado as três versões imprecisas apresentadas pela Precisa Medicamentos.

É sintomático que o governo Bolsonaro recorra à velha máxima do governo nazista de Adolf Hitler, disseminada por seu ministro da Propaganda Joseph Goebbels, de 1930 a 1945, quando foi brevemente promovido por Hitler, já tramando o próprio suicídio, a Chanceler da Alemanha na derrocada do III Reich. Goebbels ficou mais famoso pela frase: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, mas seu pensamento mais elaborado é o mote das “fake news”, ou seja, a distorção ou inversão total dos fatos por narrativas enviesadas ou falsas. Quando o fim do III Reich era inevitável, após a derrota inicial na Normandia (França) e o fracasso nas campanhas da Rússia, norte da África, sem conseguir conquistar os campos de petróleo e gás, e a fome e a destruição avançavam nas cercanias de Berlim, disse Goebbels: “Temos de fazer o povo crer que a fome, a sede, a escassez e as enfermidades são culpas de nossos opositores e fazer que nossos simpatizantes repitam isso a todo o momento”. Jogar a culpa nos outros, nos adversários é praxe das “fake news” do bolsonarismo ou manifestações oficiais de seus ministros e do próprio presidente da República.

Vejam o que aconteceu no pronunciamento em cadeia nacional de rádio e televisão, na noite dessa 4ª feira, 28 de julho, do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. O mote era fazer um apelo a milhões de brasileiros que ainda não tomaram uma vacina sequer ou não completaram o ciclo imunizante da 2ª dose (salvo a vacina Janssen, de dose única, da Johnson&Johnson). Pois nada menos de 80% do tempo foi gasto para vender a ideia de que o governo Bolsonaro se empenhou na compra de vacinas (da qual, oficialmente, o presidente que sempre desacreditou a vacinação, em especial a CoronaVac chinesa, negociada pelo governador João Doria para ser envasada pelo Instituto Butantan, sequer recebeu aplicação) e em medidas profiláticas.

Pior mesmo foi a “live” extraordinária, no dia seguinte, 29 de julho, do próprio presidente Jair Bolsonaro. Em vez da transmissão habitual de pouco menos de uma hora, após fazer convocação pelas redes sociais e nas entrevistas no cercadinho dos palácios do Planalto (seu local de trabalho) e da Alvorada (sua residência) para a “live” em que divulgaria “uma bomba”, o presidente da República gastou quase duas horas para desacreditar as urnas eletrônicas. Mesmo dizendo previamente que "não tinha provas” de fraudes nas eleições de 2014 e 2018, como lhe cobrara explicações e provas o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso, Bolsonaro, acompanhado do ministro da Justiça e Segurança Pública, o ex-secretário de Segurança do Distrito Federal, Anderson Torres, e com a assessoria do coronel do Exército, Eduardo Gomes da Silva, ex-assessor especial do ministro general Luiz Eduardo Ramos, que deixava a Casa Civil para o presidente do PP e líder do Centrão, senador Ciro Nogueira (PP-PI), seguiu a tática de Goebbels e mostrou sucessivas postagens de “fake news” reverberadas por seus apoiadores e disseminadas por sua rede de robôs. Atento, o TSE distribuiu 17 “cartões amarelos” ao longo da transmissão, rebatendo cada mentira ou fato distorcido para repor a verdade (em 2021 publicou 62 vídeos para rebater "fake news") . A “live” teve transmissão da Agência Brasil (EBC), franqueada a todos os meios de comunicação.

Mas o que prometia ser uma “bomba”, revelou-se um traque “fake”. Lembrou o fiasco do desafio de Fernando Collor à movimentação dos “caras pintadas” pelo “impeachment” em 1993: o então presidente convocou seus apoiadores a vestirem verde-amarelo e as pessoas colocaram luto nas janelas e carros e saíram às ruas de preto. A mega convocação de Bolsonaro não atraiu a audiência esperada. Começou com 120 mil pessoas acompanhando (menos do que o público de 140 mil pessoas reunidas no mesmo horário pelo “youtuber” Felipe Neto, cuja audiência crescia enquanto a do presidente da República minguava). O traque real foi apresentado ao vivo, na 2ª feira, 26 de julho, em entrevista concedida à Rádio Arapuan-FM (PB), direto do Palácio do Planalto. Ainda em recuperação da crise de obstrução intestinal que o levou a ser internado há duas semanas (teve alta hospitalar em São Paulo, dia 18 de julho), após crise interminável de soluços, o presidente não conseguiu segurar um traque constrangedor. O ruído foi capturado na transmissão, seguindo-se uma careta sem graça do presidente da República.

Uma semana antes, depois da alta hospitalar, o presidente Jair Bolsonaro não teve qualquer constrangimento para se reunir e posar para foto com a líder do partido da ultradireita alemã (Alternativa para a Alemanha, AfD, de ideário nazista), Beatrix von Storch e seu marido. Criticada pelos partidários na Alemanha por ter posado ao lado do presidente brasileiro, responsabilizado por mais de 550 mil mortes pela Covid-19, Beatrix é neta de Ludwig Schwerin von Krosigk, que foi ministro das Finanças de Adolf Hitler. Também participaram do encontro o filho 03, deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), e a também deputada Bia Kicis (PSL-DF), presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. É o tipo de fotografia que consagra ainda mais o Brasil como pária até entre os adeptos do nazismo na Alemanha, e provocou profunda reação em Israel e na colônia judaica, cortejada por Bolsonaro no governo de Benjamin Netanyahu. Não se pode baixar a guarda.

Mas se o ministro Paulo Guedes considera o IBGE na idade da “pedra lascada”, o que ele pode dizer do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, comandado pelo astronauta Marcos Pontes? Este domingo, o sistema de atualização do Programa Lattes do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, que facilita a atualização de currículos e publicação/atualização de teses de professores e pesquisadores brasileiros na área de tecnologia, bem como na área de medicina e pesquisa hospitalar/vacinal, do Instituto Carlos Chagas) completa nove dias fora do ar. Em nota oficial, o CNPq prometeu voltar ao ar nessa 2ª feira.

O apagão tecnológico é um atestado, de papel passado, do desprezo do governo Bolsonaro pela Ciência e seu avanço. Certamente, para Bolsonaro - que quis entronizar seu filho 03 como embaixador do Brasil em Washington no governo Trump, porque falava um pouco de inglês e sabia “fritar hambúrguer”, e fez questão de nomear ministro de CT&I um oficial da Aeronáutica que participou de um voo espacial na Rússia - viajar num dos foguetes dos bilionários Josef Bezos, Elon Musk ou Richard Branson é atestado de apreço pela Ciência e não mera jogada de marketing de quem quer ser mais rico e famoso. Não é demais lembrar o lema da campanha do filho 02, o vereador reeleito pelo Republicanos do município do Rio, Carlos Bolsonaro, que dá expediente em Brasília dando grandes pitacos na Secretaria de Comunicação e com acesso direto às redes sociais do presidente da República: “Vamos avançar a agenda conservadora”. Ou seja, o avanço do atraso, ainda que por meio de “fake news”, e montado em alianças com o que há de pior. O “post” de um homem no campo com um fuzil, no lugar da enxada, para comemorar o “Dia do Agricultor”, apagado poucas horas depois, é a prova pronta e acabada da preferência pelo atraso. O país não quer nem merece isso.

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