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COISAS DA POLÍTICA

Jabuticaba brasileira

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Publicado em 03/01/2021 às 08:20

Alterado em 04/01/2021 às 07:43

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Toda mudança de ano é motivo para renovação de esperanças da humanidade. Mas o Brasil entra em 2021 com os pés do presidente da República fincados em 2020. Jair Messias Bolsonaro, que já disse não ser Messias, nem coveiro, e que não podia fazer milagres após deixar escapar um “e daí”, quando lhe pediram um comentário sobre as primeiras mil mortes no país pelo novo coronavírus, que dizia ser uma “gripezinha”. Avesso ao isolamento social e ao uso de máscaras, o presidente e boa parte de sua família foram vítimas da covid-19, assim como um número expressivo de ministros, o vice-presidente, Hamilton Mourão, e colaboradores diretos que seguem o exemplo do chefe e desdenham do uso de máscara. Mourão embora usasse quase sempre, não foi poupado. Mas, “como tenho um histórico de atleta”, “tiro de letra e não preciso usar máscara, nem vou me vacinar”, vaticinou Bolsonaro.

Acontece que a conta da irresponsabilidade espargida Brasil afora pelo principal governante do país é seguida por parcela expressiva da população e por fanáticos apoiadores (recrutados ou não, como os parrudos banhistas que o receberam aos gritos de “Mito, Mito”, além de com quadrinhas ofensivas ao governador João Dória, acompanhadas pelo riso incontido do senador Flávio Bolsonaro [o homem das rachadinhas], após o mergulho presidencial de uma lancha nas águas de Praia Grande, terceiro mais populoso município do litoral paulista depois de Santos e São Vicente, e mais uns 20 a 30 metros de natação, até a área da arrebentação onde formou-se uma grande aglomeração. Todos sem máscaras, é claro.

Macaque in the trees
Bolsonaro participa de cerimônia em Brasília (Foto: REUTERS/Adriano Machado)

Não se sabe o que Bolsonaro e seus acólitos comemoravam. Na tarde de sábado, o Ministério da Saúde informava que o país completava 195.725 mortes pela Covid-19. E o presidente insistia em desdenhar agressivamente do uso de máscaras (“pois se eu já tive não vou contaminar ninguém”). O argumento é no mínimo idiota. 1 - não se sabe se uma pessoa pode ser reinfectada ou transmitir vírus, mesmo assintomática, portando o mau exemplo que inspira faz o vírus se disseminar não pela imunidade do rebanho, mas pela ignorância bovina dos que o acompanham; 2 – o Brasil é o quinto ou sexto país do mundo em população, com 212,3 milhões, [o Paquistão teria nos ultrapassado em 200 mil habitantes] e tem o terceiro maior número de mortes. Mas o Paquistão só tem 456 mil casos e 22,6 mil mortes.

O Brasil perde para os 352 mil mortos dos Estados Unidos, de Donald Trump, os 150 mil da Índia e fica à frente dos 126,7 mil do México, dos 75 mil da Itália, dos 74,6 mil do Reino Unido, dos 50 mil da Espanha. Todos, exceto os EUA, que têm 329 milhões de habitantes, com população bem menor que a nossa. Mas eles têm algo em comum que o Brasil de Bolsonaro não tem: estão sob o frio do inverno, que facilita a propagação do vírus, e tiveram toda a pressa do mundo em encontrar vacinas que neutralizassem o vírus e já iniciaram a vacinação. São 50 entre as quase duas centenas de países do mundo que já vacinam gratuitamente sua população. Bolsonaro disse que ”não dava bola” para a pressa dos outros países. Pensa apenas no seu caso particular (já que se acha imune por já ter tido o virus e desenvolvido anticorpos). Que pobreza de espírito. Que falta de responsabilidade presidencial. Nem o “Justo Verissimo” do Chico Anysio trataria tão mal o povo.

Por essas e por outras, o jornalista Jose Luiz Datena, apresentador do “Brasil Urgente”, da TV Bandeirantes, bateu duramente neste sábado em Bolsonaro. Culpou-o virtualmente pelas quase 200 mil mortes e disse que o povo não devia seguir esse ou aquele político que estimula aglomerações. Datena é um dos jornalistas com mais acesso direto ao presidente, que, por vezes, até liga para o apresentador durante seu programa vespertino. Vamos ver se o presidente sente o tranco.

Até então nada parecia o incomodar ou faze-lo sair dos seus descuidos (uso a palavra em oposição ao usual “seus cuidados”, pois não os tem). Na live de quinta-feira repetiu sandices. E passou das palavras à ação ao vetar a prioridade dos congressistas às verbas para o combate à Covid-19, incluindo as vacinas, é claro. É inacreditável.

Por essas e outras, Jair Bolsonaro é único entre seus pares. Nossos vizinhos da Argentina e da Colômbia, ambos com 43 mil mortes, correm a vacinar, assim como o Chile, o México, o Canadá, a Costa Rica, Israel, as principais nações da península arábica. A Europa em massa. Ninguém duvida da ciência e da vacina. Sempre se falava em economia que o Brasil se destacava dos demais países como uma jaboticaba. O argumento era de que o Brasil era o único país a usar a correção monetária para permitir a convivência com a inflação, em vez de fazer o seu combate (que veio, afinal, com o Plano Real, mas não acabou com a indexação).

Minha discordância vinha do fato de que a botânica registrava a existência da Myrtaceae Myrtales em alguns países da América do Sul e até a Costa Rica. Mas houve uma reclassificação, e a única jaboticaba Plinia cauliflora tem como origem a Mata Atlântica brasileira. São quatro tipos e as duas mais famosas, a Sabará, de frutos negros, de porte grande, e a jabuticaba-precoce (mais miúda).

A correção monetária não surgiu apenas em 1964, no regime militar, como se pensa. Veio no governo JK, com a instituição da correção do ativo imobilizado (coluna 12 da Fundação Getúlio Vargas). E foi por imposição das multinacionais, sobretudo a indústria automobilística que estava transferindo velhas matrizes de veículos da Europa (modernizados pelo Plano Marshall) para o Brasil. Quando se registrava um investimento estrangeiro no país, ele estava sujeito a Lei de Registro e Fiscalização de Capital Estrangeiro (Firce). Pela Firce, o capital depreciava 10% ao ano para efeito de remessa. Assim, um registro de US$ 100 mil poderia remeter no primeiro ano até 90%, ou US$ 90 mil. No segundo ano, até 81.

Isso não quer dizer que em 10 anos o capital estivesse desfeito. Mas como a inflação brasileira começou a crescer no pós-guerra e passou dos 5,7% ao ano com JK, as empresas estrangeiras assim o exigiram (com grande apoio da Light, que era o maior grupo estrangeiro do pais). O "polvo" canadense parara de investir e JK teve de fazer hidrelétricas (Furnas e Três Marias) para gerar energia para a futura indústria do ABC paulista. Os advogados da Light, José Luiz Bulhões Pedreira e Dario de Almeida Magalhaes, foram os grandes responsáveis pela lei de Correção do Ativo Imobilizado. Depois, em 1964, Mario Henrique Simonsen ajudou a dar forma mais ampla ao cálculo e à extensão da correção monetária.

Mas a jabuticaba brasileira é mesmo Jair Bolsonaro, que destoa dos mais radicais e truculentos presidentes e déspotas mundo afora. Todos querem a vacina para fazer o bem desejado por seu povo. Bolsonaro parece fazer o contrário.

Sem vacinas à vista ou com prazo, o brasileiro pode virar o pária defendido pelo chanceler Ernesto Araújo. Não poderá sair do país, por falta de vacina. E, segundo a decisão do STJ, quem está fora também não pode voltar sem teste (ou vacina).

Parodiando Chico Buarque cantando Dominguinhos ao contrário: "Ah, isto aqui tá muito ruim"...