CINEMA

O direito de ser, de existir, de amar

Documentário "Corpolítica" estreia 8 de junho (5ª feira), nos cinemas. O Diretor, Pedro Henrique França, conversou com o Jornal do Brasil.

Por MYRNA SILVEIRA BRANDÃO
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Publicado em 31/05/2023 às 18:09

Alterado em 31/05/2023 às 18:10

Diretor Pedro Henrique França Foto: Liz Dórea

Produzido por Marco Pigossi, o documentário “Corpolítica”, do diretor Pedro Henrique França, discute a importância da representatividade LGBTQIA+ em cargos políticos e a humanização do tema na sociedade e nas famílias brasileiras.

A partir do recorde da candidatura LGBTQIA+ alcançado em 2020, o diretor procurou entender a motivação por trás do despertar político na comunidade e acompanhou candidatos e personagens do debate político para o documentário.

E traz essa humanização em suas famílias, mostrando que o acolhimento e a coragem para encarar o mundo começam em casa, sobretudo com as mães, que também ganham lugar de destaque no filme.

O filme já foi selecionado para mais de dez festivais nacionais e internacionais como Merlinka Festival (Sérvia), Hollywood Brazilian Film Festival (Los Angeles), CinHomo (Espanha) e Queergestreift (Alemanha).

“Corpolítica” traz depoimentos de candidatos na disputa eleitoral de 2020. Entre outros, William De Lucca, Fernando Holiday, Thammy Miranda e Jean Wyllys, que cumpriu dois mandatos como deputado federal, mas precisou se exilar antes do terceiro em 2019, por ter sido ameaçado de morte.

Além de diretor e roteirista, França é jornalista e ator. É autor dos roteiros de programas como “Esquenta”, de Regina Casé, da premiada série documental “Quebrando o Tabu” e do programa “Que história é essa, Porchat?”. Dedica-se a projetos audiovisuais com foco na diversidade.

“Corpolítica”, seu primeiro longa, conquistou os prêmios de melhor filme nacional no MixBrasil e de Melhor Documentário no Festival do Rio. Além de Melhor Filme LGBTQIA+ no Montreal Independent Film Festival e Melhor Roteiro no Festival de Brasília, entre outros.

Em entrevista ao Jornal do Brasil, o cineasta revelou o que o levou a realizar “Corpolítica”, os critérios adotados para a seleção de imagens e depoimentos, e sua expectativa para os resultados e receptividade ao filme.

 

JORNAL DO BRASIL - Qual a principal motivação para ter realizado “Corpolítica”?

PEDRO HENRIQUE FRANÇA - Estava em casa, no meio daquela situação sombria de pandemia, sem entendermos direito se ia ter eleição e como seria, quando vi uma notícia de um recorde de candidaturas LGBTQIA+ nas eleições municipais de 2020. Liguei pro Marco Pigossi e falei que a gente precisava produzir algo, entender esse movimento. Era uma reação a um momento totalitário que estávamos vivendo, aos discursos de ódio? O que mobilizava aquelas pessoas a encararem um processo tão difícil que é ser um LGBTQIA+ disputando narrativa e poder na política, no país que, há décadas, ocupa a posição de país que mais mata LGBTQIA+ no mundo? Esse filme começou com muitas perguntas, mas algumas questões já muito conscientes, como o lugar da humanização dos nossos corpos e da importância fundamental da família nos nossos processos de aceitação, acolhimento e coragem pra encarar o mundo, que é muito violento, sobretudo no Brasil, para a população LGBTQIA+. São recorrentes os usos das nossas imagens como ameaças às famílias, quando quem destrói sistematicamente diversas famílias são os discursos de ódio e não as nossas existências. A Renata Carvalho, uma atriz trans brilhante que foi muito perseguida por um espetáculo que fez e que está no filme, diz uma frase que resume bem o que é ser LGBTQIA+: o nosso corpo ele não é julgado, ele já é culpado.

 


A seleção de imagens de arquivo, bem como as pessoas escolhidas para as entrevistas, têm tudo a ver. Qual critério você seguiu para isso?

Desde o início, esse filme nunca foi sobre a campanha eleitoral em si, a disputa, ainda que seja também um registro histórico de uma eleição realizada durante a pandemia. Mas é, sobretudo, sobre um processo violento que é se candidatar num espaço hostil e predominado por homens brancos heterossexuais cisgêneros, que infelizmente ainda dominam as estruturas de poder. A ideia sempre foi entender por que as pessoas LGBTQIA+ são a população mais sub-representada dentro da política. Atualmente, 0,16% dos cargos políticos no Brasil são preenchidos por pessoas autodeclaradas LGBTQIA+. É claro que esse número deve ser maior, mas dentro de um sistema que estigmatiza e violenta esses corpos é natural, e não deveria ser que tão poucos sejam autodeclarados. Esse número não mudou da eleição passada pra cá. Era 0,16% e segue 0,16%, segundo dados da ONG Vote LGBT. A gente vive uma impressão de que estamos evoluindo, e de fato estamos, mas todo avanço é puxado pelo retrocesso, por esse falso conservadorismo que nos atrasa enquanto sociedade. “Corpolítica” traz essas imagens de arquivo para mostrar como é, e como não pode mais ser, estar ali dentro, mas também para apresentar as pessoas que desafiaram e desafiam diariamente o sistema, pois entenderam que a política é a ferramenta fundamental para as mudanças urgentes sobre direitos básicos, como casar, ter filhos, acessar banheiros. Nenhum direito ou lei de proteção até hoje foram promulgadas no Legislativo brasileiro. Isso é um absurdo e diz muito sobre nossa sub-representatividade na política brasileira e a importância de isso mudar. Tudo o que temos em relação a leis e direitos, e que ainda é precário, foi conquistado através do Judiciário por omissão do Congresso Nacional.

 

Como você acha que o filme vai contribuir para mudar esse quadro adverso?

Acho que "Corpolítica" tem a missão de humanizar esses corpos que querem apenas ter o direito de ser, de existir, de amar. O amor, o afeto e o respeito a esses corpos não podem mais ser negligenciados. Nem alvos de violência, nem alvos de piada, que também é uma forma terrível de violência, pois as piadas desumanizam esses corpos e autorizam as violências na rua e colaboram, sem dúvidas, para que o Brasil já tenha tido antes do fim do primeiro semestre quase 100 mortes de corpos LGBTQIA+. É um absurdo a gente seguir ostentando esse posto de país mais violento do mundo para corpos como os nossos, sobretudo para as mulheres trans. "Corpolítica" também é uma homenagem à política enquanto instrumento de mudança e manutenção da democracia.
Foi muito bonito ver a reação do público pelos festivais, ter ganhado prêmios do público. Corpos LGBTQIA+, que se sentiram impulsionados a entrar pra política ou apenas estar mais inserido no debate. A política é importante, é com ela que a gente muda as coisas que precisam ser mudadas. Mas também por outro lado, e tão especial quanto foi ver casais heterossexuais cisgêneros emocionados com o acolhimento familiar, com aquelas mães que fizeram com que seus filhos e filhas se tornassem pessoas incríveis e corajosas. Você olha a trajetória da relação de mãe e filha, por exemplo, entre a Erika Hilton e a sua mãe, é impossível você não se comover com aquela trajetória de rejeição e de retorno. Mas "Corpolítica" também discute mais a fundo a questão da representatividade, que não pode ser apenas alegórica, apenas identitária. Uma representatividade eficaz tem de estar, no mínimo, comprometida com aquilo que ela representa, especialmente pelo voto identitário que lhe foi confiado.

 

Após sucesso em vários festivais e prêmios, como está sua expectativa para a estreia?

Olha, dá um frio na barriga imenso estrear um filme seja ele de qual vertente for, ainda mais um documentário, que tem menos apelo comercial. A pandemia e esses anos todos de descaso e ataques à cultura ainda afetam muito o interesse público sobre as artes, ainda mais arte LGBTQIA+. Vamos lembrar que não faz nem dez anos que uma exposição de temática LGBTQIA+ foi censurada aqui nesse país. Ao mesmo tempo é muito bom ver o Ministério dos Direitos Humanos nas mãos do Silvio Almeida, que eu admiro tanto. E ter a Simmy Larrat junto dele na Secretaria de Promoção e Defesa da População LGBTQIA+. Ver a Cultura com Margareth Menezes, sendo olhada de novo com atenção, carinho e atenta à diversidade. O Brasil, a política, a cultura, não podem mais ficar apenas nas mãos de homens brancos cisgêneros heterossexuais. O Brasil não é isso. O Brasil tem maioria feminina e negra, uma enorme população LGBTQIA+, um enorme contingente de pessoas com deficiência, tem povos originários. O poder também tem que ser nosso. Queremos esses corpos ocupando espaço e, por que não, um dia na Presidência da República. Não podemos arrefecer, temos que estar na política, seja como político, seja como cidadão, porque os neofascistas seguem espalhados por aí disfarçados de cidadãos de bem.

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