CINEMA

O impactante ‘Sociedade do medo’, de Adriana L. Dutra, está nos cinemas

Filme encerra a Trilogia da Catarse

Por MYRNA SILVEIRA BRANDÃO
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Publicado em 27/10/2022 às 13:55

Adriana L. Dutra, dirigindo 'Sociedade do medo' em plena pandemia divulgação

A Trilogia da Catarse, roteirizada e dirigida pela cineasta carioca Adriana L. Dutra, é formada pelos documentários “Fumando espero” (2009), “Quanto tempo o tempo tem” (2015) e “Sociedade do medo” (2022), nos quais ela compartilha questões existenciais com os espectadores, objetivando a reflexão de assuntos sensíveis e universais que afetam o ser humano contemporâneo.

O filme que encerra a trilogia é uma reflexão sobre a epidemia do medo que assola a humanidade, potencializada por um sistema que, historicamente, manipula as massas a partir da propagação do pânico e da insegurança.

Em Tóquio, Nova York, Los Angeles, Londres, Paris, Amsterdam e outras cidades, a documentarista entrevistou especialistas de diferentes realidades socioculturais. Os filósofos Francis Wolff e Cyrille Bret, o padre Júlio Lancellotti, a jornalista Flávia Oliveira, o físico Amit Goswami, a deputada federal Talíria Petrone, o líder indígena Ailton Krenak, entre muitos outros que dão seus depoimentos sobre as variadas vertentes do medo.

 

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O filósofo e líder indígena Ailton Krenak, um dos entrevistados no documentário (Foto: divulgação)

 

No filme, a diretora conversa com todas essas personalidades para analisar o momento que estamos vivendo e que nos deixa cada vez mais assustados com coisas que acontecem. Conforme ela mesma afirma (na narração em off), “o medo é um potente instrumento de poder”.

Em entrevista ao JORNAL DO BRASIL, a cineasta falou sobre a motivação para realizar o filme, os critérios que utilizou para a seleção dos entrevistados, o cerne do seu cinema e a atualidade do tema com o contexto histórico e político do Brasil de hoje.

 

JORNAL DO BRASIL - O filme lembra que existe aquele medo sadio – se é que podemos dizer assim – que nos protege do perigo, mas o que você aborda é o autoritário que utiliza elementos para amedrontar, propagar o pânico, a insegurança e principalmente manter o poder. Qual a principal motivação que a levou ao tema?

ADRIANA DUTRA –“Sociedade do medo” faz parte de uma trilogia de documentários que venho realizando ao longo dos últimos 14 anos, onde utilizo minhas aflições pessoais para pensar alguns temas que são relevantes para toda a sociedade. São temas, inclusive, universais. O primeiro filme foi “Fumando espero”, que aborda o vício pela nicotina, e fiz uma profunda reflexão sobre a indústria tabagista. O segundo foi "Quanto tempo o tempo tem?”, um documentário, que inclusive está hoje disponível na Netflix, que trata da relação com o tempo e de como a conexão com a internet fez uma grande aceleração e essa sensação de urgência. E em terceiro, “Sociedade do medo”, que é um documentário também pessoal que trata sobre essa sensação de medo constante que assola a sociedade contemporânea. Nós vivemos um momento da história onde, por conta das redes sociais, da comunicação ser tão efetiva, somos bombardeados diariamente por informações que nos abalam profundamente. Essa foi a motivação para fazer este documentário, e ele acaba sendo um veículo importante para conscientização. Acho que uma sociedade consciente pode mudar muitos paradigmas.

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No seu cinema – e principalmente na Trilogia da Catarse – você sempre procura abordar temas sensíveis e universais que podem trazer efeitos nocivos para a sociedade contemporânea. E esse não é diferente e, por sinal, é um dos que mais focam no tema e vai direto ao ponto. Fale um pouco mais sobre isso.

Sou uma pessoa que me interesso muito por filosofia. Tenho interesse em pensar questões da sociedade, e a trilogia da Catarse é minha plataforma de pensamento, podemos dizer assim, onde resolvo muitas questões internas e ofereço pras pessoas essa ferramenta de pensar, que são os documentários que venho realizando. Acho que o cinema pode ser uma ferramenta de consciência. Assim como o medo é uma ferramenta de manipulação, o cinema, o audiovisual, a cultura, a literatura, o teatro, enfim, todas as artes têm como premissa pensar a vida, pensar a sociedade, e acho que utilizo o cinema como ferramenta de transformação. Acho que esse filme chega num momento muito especial da nossa sociedade, principalmente no Brasil, né? Acho que ele é um filme que chega na hora perfeita, é um filme importante para que a gente possa debater e fazer entender o que está acontecendo no mundo, porque ele dá muitas informações e muito alicerce para que a gente tenha um pensamento crítico do que está se passando no Brasil e no mundo. Então, acredito que os documentários que realizo são importantes para sociedade no ponto de vista de enriquecer o pensamento crítico.

 

No filme você entrevista especialistas de diferentes realidades culturais como filósofos, padre, escritores, físicos, políticos. O objetivo foi ouvir a opinião de pessoas abordando variadas vertentes do medo, ou houve outras razões? Enfim, quais critérios nortearam a seleção dos entrevistados?

Quando estava montando “Quanto tempo o tempo tem”, com meu companheiro de montagem que é o Renato Martins, a gente conversava muito. Isso foi em 2015. E nessa sala de montagem a gente começou a falar dessa questão do medo e observar que estava muito latente na nossa sociedade. Fake news, nada mais é do que usar um medo imaginário. Que está no inconsciente coletivo de todos nós e trazer à tona e fazer com que as pessoas se amedrontem. Por conta disso, os poderes conseguem manipular as pessoas.

Então, a gente conversava muito sobre isso, e comecei a pesquisar a questão do medo. E a maioria das pessoas que está no filme já tinha levantado alguma questão em relação a isso por meio de teses, pensamentos, livros… Por exemplo, Frank Furedi, Jason Stanley, Ailton Krenak, Flávia Oliveira, Paula Jonhs, Ivana Bentes são pessoas muito interessantes, com background bastante diverso, mas com a consciência da manipulação pelo medo, e que já desenvolveram algum livro, algum pensamento sobre essa questão. Essas pessoas fizeram parte da minha pesquisa. Depois que pesquisei durante dois anos sobre esse tema, eu as busquei para fazerem parte do filme. Também queria encontrar pessoas com diferentes nacionalidades, diferentes representatividades, porque o filme é muito representativo, com uma mulher trans, mulheres negras, um indígena, com pessoas de nacionalidades distintas... Tenho muita sorte também porque as pessoas todas toparam fazer o filme. Isso foi muito legal.

 

A narrativa é uma ponte direta com o atual contexto histórico e político brasileiro, e praticamente prova como a cultura do medo nos trouxe à atual conjuntura. Havia essa intenção?

É interessante isso, quando eu digo que o filme chega na hora exata, né? Entre o primeiro e o segundo turno das eleições no Brasil. Diante de tudo que a gente tem vivido, nós fomos invadidos... pela covid.

Depois, logo depois, quando as coisas começam a melhorar, chega a guerra na Europa, que assusta a todos nós com a possibilidade de uma guerra nuclear. Esse é um velho medo de todos, que sempre assolou o nosso inconsciente. Acho que temos uma capacidade de trazer temas muito contundentes para os momentos em que eles são exibidos. Aconteceu isso no “Fumando espero”, aconteceu isso em “Quanto tempo o tempo tem”, e está acontecendo com “Sociedade do medo”. Não previ nada disso quando comecei o filme. O filme foi invadido pelo medo da Covid. Inclusive, ele tinha uma proposta diferente de final, mas mudei completamente porque a realidade foi mais importante que o roteiro. Então, o que aconteceu com a gente foi muito assustador. O filme traz essa dimensão.

Nós estamos muito adoecidos. A nossa sociedade, nossa inteligência coletiva, está muito abalada com tudo o que nós temos vivido por meio dos nossos líderes, por meio do medo que a gente tem do outro, por medo do nosso medo imaginário que está destruindo a nossa própria realidade. Enfim, acho que o filme “Sociedade do medo” pode trazer um pouco de consciência para todos nós. Precisamos muito.

 

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