CINEMA

'Um Filme em Forma de Assim', de João Botelho, teve première mundial no IndieLisboa

Trata-se de um tributo ao escritor Alexandre O’Neill, com roteiro assinado por Botelho e Maria Antónia Oliveira. O título nos remete a um conto de O’ Neill, 'Uma coisa em forma de assim'

Por MYRNA SILVEIRA BRANDÃO
[email protected]

Publicado em 30/04/2022 às 09:48

Alterado em 30/04/2022 às 09:48

Cineasta João Botelho, diretor de 'Um Filme em Forma de Assim' Foto: Miguel Bartolomeu

A sessão aconteceu quinta-feira (28) com sala cheia, presença do diretor e dos atores e com muitos aplausos ao final. Botelho é um dos cineastas mais importantes de Portugal e do cinema universal e, aos 72 anos, está em plena atividade.

“Um Filme em Forma de Assim” é um tributo ao escritor Alexandre O’Neill, com roteiro assinado por Botelho e Maria Antónia Oliveira. O título, que faz parte da homenagem, remete a um conto de O’ Neill,  “Uma coisa em forma de assim”.

O elenco conta, entre outros, com Pedro Lacerda, Inês-Castel-Branco, Cláudio da Silva, Crista Alfaiate e Ana Quintans. A direção de fotografia é de João Ribeiro e a produção da Ar de Filmes.

O longa-metragem traz trechos dos “magníficos textos” de O’ Neill, ditos e cantados pelos atores, e recria cenas que constroem uma narrativa inovadora sobre o universo literário do poeta.

O veterano cineasta realizou os primeiros filmes no final dos anos 1970 e estreou em longas-metragens em 1981, com “Conversa Acabada”, seguindo-se “Um Adeus Português” (1986), sobre a guerra colonial.

Sua filmografia inclui vários trabalhos inspirados em obras de escritores portugueses como Agustina Bessa-Luís e José Saramago. Entre eles, “A Corte do Norte” (2008), “Filme do Desassossego” (2010), “Os Maias: Cenas da Vida Romântica” (2014) e “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (2010).

Botelho conversou com o JORNAL DO BRASIL sobre “Um Filme em Forma de Assim”, o viés inovador que adotou para realizá-lo e como vê o futuro do cinema hoje.


JORNAL DO BRASIL - Seus filmes têm uma grande identificação com o público, e esse certamente não será diferente. Qual sua expectativa para a receptividade dos espectadores?

JOÃO BOTELHO - Os espectadores são a única verdade no cinema, que ouvem e veem a coisa que é falsa e que não é a vida, mas representação e espetáculo, e que se é uma arte, é a dos vampiros que roubam a poesia, o teatro, a pintura, a escultura, etc.… artes mais puras para que as emoções aconteçam e se agitem um pouco os seus neurónios. Que tenham prazer e acreditem que é possível filmar o infilmável e que o magnífico texto pode ser o personagem principal de um filme inteiro.

 


O universo literário de O’ Neill é apresentado de forma muito inovadora, inclusive com a inserção de seus textos cantados pelo elenco. Como surgiu essa ideia que o coloca de uma forma tão integradora com a arte e a poesia?

Um dia, no seu estrondoso "Livro do Desassossego”, Fernando Pessoa, sob o nome de Bernardo Soares, a propósito do padre António Vieira, elogiando a eloquência e a beleza do seu texto barroco, escreveu a frase lapidar: “a minha pátria é a língua portuguesa”. Os textos de O’Neill são também exemplares da minha pátria e mesmo os que não apresento cantados, soltam música por todos os lados. Decidi assim fazer um filme musical de planos de sequência com cores berrantes que acho justos para as espantosas criações de um enorme escritor.

 


O filme é apresentado como uma homenagem a O’ Neill, a partir de sua obra literária. Na nota de intenções, o Senhor diz que “pensou na criação desenfreada do escritor onde a confrontação entre o erudito e o popular atinge o que se pode designar como a procura surrealista do Belo”. Poderia falar um pouco mais sobre essa definição tão em sintonia com a obra dele?

Alexandre O’Neill é um vulcão que jorrou lava para muitas direções. Capaz de escrever os mais notáveis e comoventes poemas, “Um Adeus Português”, “Lisboa Remanchada”; as mais inventivas frases publicitárias, “Vá de metro Satanás”, “Passe um verão desafogado”, “Bosch é Brom”; as mais cómicas narrativas, as mais ácidas crónicas, as fotografias e os textos mais abstratos, poemas populares e por aí afora. Boêmio, com uma pulsão de vida maior do que a própria vida, ele comeu demais, bebeu demais, amou muitas mulheres e dormiu de menos. Sôfrego, agarrou o tempo que lhe foi dado na terra e a criação como ninguém. Talvez seja o grande e primeiro pós-moderno deste país.

 


Uma vez o Senhor disse numa entrevista que “o cinema é uma arte com pecado”. Em face de tudo o que vivemos no mundo contemporâneo e do papel fundamental que o cinema tem e continua tendo na história da humanidade, o que acrescentaria agora?

Quando as primeiras imagens em movimento apareceram era obrigatório colocar uma moeda na ranhura para que o “milagre” acontecesse. O pecado original do cinema é o dinheiro, o negócio, a ganância. Hoje é triste ver filmes que rendem muito, mas que não aguentam uma segunda visão, produtos para consumir de imediato, mas que se esquecem no dia seguinte. Um bom livro ainda será um bom livro, ou melhor, cem anos depois de ser escrito. Um quadro de Cézanne é um quadro de Cézanne para sempre. Hoje, a vertigem do consumo do dinheiro é imparável e a memória tende a desaparecer. O meu sonho é que os meus netos e os filhos deles não tenham vergonha dos filmes que hoje faço e que o cinema possa voltar a considerar os espectadores, não como público, mas como seres humanos providos de “alma” e de cérebro, capazes de defenderem o nós contra a praga individualista que por agora reina no mundo.

 

Tags: