CINEMA

Filme brasileiro integra mostra em Berlim/2022

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Por MYRNA SILVEIRA BRANDÃO
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Publicado em 04/02/2022 às 11:35

Alterado em 04/02/2022 às 11:35

O diretor Rafael C. Parrode Foto: Yolanda Margarida

O Festival de Berlim confirmou a realização de sua 72ª edição em formato presencial de 10 a 16 de fevereiro, ressaltando que, em face da pandemia, serão tomadas todas as medidas sanitárias e de segurança estabelecidas pelos órgãos de saúde.

O Brasil não está na seleção principal, mas conforme já anunciado concorre em mostras paralelas: em uma delas, com “O Dente do Dragão”, de Rafael Castanheira Parrode, selecionado para a Fórum Expanded.

“O Dente do Dragão” – que é anunciado em destaque pelos curadores do festival no texto de apresentação da mostra – aborda a contaminação por radioatividade em Goiânia em 1987. O cineasta goiano utiliza diversos materiais para narrar a ameaça nuclear e sua relação com a contemporaneidade.

Mas ninguém melhor do que seu próprio diretor para dar mais detalhes do filme, conforme a tocante e esclarecedora exclusiva que concedeu ao JORNAL DO BRASIL.


JB - O que representa a seleção de “O Dente do Dragão” para a prestigiada Fórum Expanded de um festival tão exigente como Berlim?

RAFAEL CASTANHEIRA PARRODE - É uma honra. Sempre acompanhei muito de perto a programação da Fórum e da Fórum Expanded, e poder mostrar um trabalho ali agora é uma alegria e uma responsabilidade. Sobretudo neste momento de total desmonte do cinema brasileiro pelos governos federal e também os estaduais que interromperam uma das fases mais produtivas da história do nosso cinema. E principalmente quando vemos a cinemateca brasileira sendo destruída e com ela toda a memória audiovisual da história desse país. Meu filme lida sobretudo com a memória, a materialidade dessa memória, então tudo isso contamina muito o filme.

 

Sabemos que a realização de um filme tem muitas motivações, mas no caso, qual a principal para ter abordado o tema da contaminação por radioatividade ocorrida em Goiânia em 1988?

Na verdade, o acidente aconteceu em setembro de 1987. Eu tinha cinco anos naquela época e me lembro muito vivamente do horror daquilo tudo. Então toda minha percepção daquela tragédia vem daí. Uma história de horror que parece vinda de um sonho, mas que é real e que é presente na vida das vítimas e de seus descendentes que carregam as marcas e os traumas daquele absurdo todo. Mas eu acho que o filme parte, acima de tudo, de como eu entendo a cidade de Goiânia, e de como a sua gênese (esse símbolo de uma modernidade falida, desse buraco no meio do nada que o Claude Lévi Strauss descreve no “Tristes Trópicos”), conflui para a contradição da fronteira que ela é até hoje. A tragédia do césio é só mais um desdobramento do fracasso desse projeto civilizatório. Então essas eram questões que sempre me assombraram e que se relacionam diretamente com a forma como eu sinto e percebo essa que é a cidade em que eu nasci.

Quais desafios precisou vencer para realizar o filme, inclusive quanto à obtenção de imagens da época?

Acho que o maior desafio não era a obtenção das imagens em si, e sim enfrentamento dessas imagens produzidas ao longo dos anos sobre o acidente e suas vítimas diretas. A hiperexposição das vítimas, a forma antiética como eram abordadas e registradas, o estigma que aqueles olhares imprimiam sobre aquelas pessoas, era algo que me dava náusea. Então a principal questão foi a de quais imagens usar e de como usá-las. Não me interessava fazer mais um filme sobre o césio, mas sim de revelar as deformidades desses arquivos, suas ranhuras, decomposições, fissuras, pra tentar reconstruir uma narrativa desse fracasso civilizatório a partir desses arquivos contaminados. Uma das questões que mais me perturbavam sobre a tragédia do césio era o fato de que todas as memórias físicas daquelas pessoas haviam se perdido, enterradas por causa da contaminação. Álbuns de fotografia, peças de roupas, móveis, eletrodomésticos e até animais de estimação, tudo foi enterrado, arrancado da vida das vítimas. Então esse era pra mim um dos efeitos mais maléficos desse episódio todo: da despersonalização daquelas pessoas, da perda de suas individualidades, subjetividades, das suas histórias corroídas. Porque esse é um episódio que revela muito claramente o abismo em que esse processo civilizatório humano se despencou.

Fale um pouco sobre sua expectativa quanto à receptividade dos espectadores não só na première mundial em Berlim, mas também na continuidade em outros festivais, mostras, circuito....

Meus filmes, pelo fato de lidarem com uma certa radicalidade formal e narrativa, não são muito bem aceitos em determinados festivais, e portanto a chancela de Berlim ajuda a retirar o filme de um nicho muito específico do cinema experimental de found footage (tipo de filme apresentado como imagem encontrada), que geralmente estão restritos a festivais muito pequenos voltados para um público mais específico. Acho que o filme ser exibido em um festival tão importante possibilita que ele seja mais visto e melhor entendido nesse sentido. Espero mostrá-lo logo em outros lugares e, sobretudo em Goiânia, porque acho que tudo vai ressoar de outra forma ali. É um filme bastante aberto para os espectadores, que possibilita uma relação mais física, onírica e não tão racional com esse episódio, então não sei o que esperar da recepção do público. Estou curioso pra ver como o filme vai bater na cabeça das pessoas e torço pra que ele seja muito visto e debatido.

Outras participações brasileiras

O Brasil também foi selecionado para a mostra de curtas com “Manhã de Domingo”, de Bruno Ribeiro; a Panorama, com “Fogaréu”, de Flávia Neves; a Fórum, com “Mato Seco em Chamas”, de Adirley Queirós/ Joana Pimenta e com Três Tigres Tristes, de Gustavo Vinagre; e a Fórum Expanded, além de “O Dente do Dragão”, com “Se Hace Camino al Andar”, de Paula Gaitán.

 

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