CINEMA

Memórias de vida e do audiovisual brasileiro

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Por MYRNA SILVEIRA BRANDÃO
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Publicado em 30/08/2021 às 13:10

Alterado em 30/08/2021 às 13:10

Set de filmagem em 2019: Orlando, Jamille, Lara e Conceição Foto: Gabriel Teixeira

“O Amor Dentro da Câmera”, de Jamille Fortunato e Lara Beck Below, é um dos destaques do Brasil no Festival IndieLisboa, que terá seu encerramento dia 6 de setembro.

Produzido por Cecília Amado, o filme é sobre a vida de Conceição e Orlando Senna, nomes que estiveram sempre à frente da filmografia brasileira. Assim, além de documentar o romance do casal de quase 60 anos, o filme mescla fatos do cinema latino-americano ao longo desse tempo, principalmente nas fases do Cinema Novo e Cinema Marginal.

Jamille Fortunato é autora do premiado curta-metragem “Cordilheira de Amora II”, que além de receber a qualificação para o Oscar, foi finalista do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro em 2016. “O Amor Dentro da Câmera”, realizado com Lara Beck Below, foi selecionado para o festival português na prestigiada mostra Director’s Cult.

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Cartaz de 'O Amor dentro da Câmera' (Foto: Foto: Kaula Cordier)

Em entrevista exclusiva ao JORNAL DO BRASIL, Jamille falou do filme, da intima e profícua ligação do casal Senna com o Cinema Brasileiro e latino-americano e do significado dessa seleção para o festival europeu.

JORNAL DO BRASIL – Em “O Amor Dentro da Câmera”, você compartilha com a audiência memórias da vida de duas pessoas e, ao mesmo tempo, fala da identidade do Cinema Brasileiro que Conceição e Senna ajudaram a construir. Como conseguiu expressar tão bem essas duas partes?

JAMILLE - Tínhamos a preocupação de não termos em mãos, um documentário clássico, com princípios didáticos e explicações institucionais. Realmente, tentamos evitar ao máximo esse caminho. Por outro lado, nos apegamos ao que nos moveu a fazer o filme: muitos momentos de intimidade com o casal, principalmente nas refeições que compartilhamos. Entre garfadas, goles e tragadas, descobrimos histórias incríveis e sensíveis contadas pelos dois. E se era nesses momentos descontraídos que as histórias surgiam, era deles que tentamos captar essa essência para a câmera. Creio que a busca por esse caminho, nos ajudou a equilibrar assuntos como memórias da vida e acontecimentos históricos relevantes ao Cinema Brasileiro.


Um ponto alto no filme é também o registro de imagens de arquivo e de memória. Houve dificuldade para conseguir essa documentação?

A casa deles no Rio de Janeiro é um verdadeiro museu. Guarda um acervo impressionante. Muito antes de começar a filmar, todas as vezes que eu ia ao Rio e ficava hospedada na casa deles, eu deixava o computador gravando a noite toda as matérias que eles tinham passado para CD. O que já nos serviu bastante. Mas foi preciso muito mais que isso. Contratamos uma pessoa, o Glauber Lacerda, que foi até Cuba pesquisar pessoalmente as imagens relacionadas ao casal que viveu em Havana por 10 anos. Contamos com diversos apoios dos cubanos. E aqui no Brasil seguimos com a pesquisa de material nacional. Conseguimos filmes dirigidos por eles que nem eles tinham mais, sem contar o acervo de fotos que eles têm. O Orlando me contou que está organizando, por conta própria, as fotos que estão na casa deles e já chegam a 8 mil!! Este é outro tema, mas seria de suma importância para o audiovisual da América Latina que conseguíssemos apoio para organizar e disponibilizar esse acervo do Senna.

Na sua carreira de diretora, fica visível que você sempre escolhe o caminho da espontaneidade. Há essa intenção ou é também algo espontâneo, que surge?

Há essa intenção e, ao mesmo tempo, eu trilho o caminho para deixar esse “algo espontâneo” surgir. Eu me guio muito pelas crianças. Enquanto elas não percebem que estão claramente sendo filmadas, conversas espontâneas e preciosas surgem. Quando elas se dão conta, o foco passa a ser a câmera. Elas querem levantar e olhar o que tem do outro lado, o que tem dentro. Por isso que na maioria das vezes, nesses casos espontâneos que surgem, eu acabo filmando com o celular. Além disso, com qualquer entrevistado, eu raramente falo: “Olhe para a Câmera”. Sempre digo, “olhe para mim, vamos bater um papo...” Nós últimos anos eu percorri muitas comunidades para dar oficinas de Audiovisual: Quilombolas, Indígenas, Ribeirinhas, pesqueiras...São pessoas que não estão acostumadas com a câmera apontada para elas. Que assim como eu, que morro de vergonha ao ser filmada, vão deixar a espontaneidade escapar diante das câmeras, luzes e muita ação ao redor. Então, algo que eu aprendi nesse meio tempo, foi invisibilizar ao máximo possível, o material cinematográfico. Mas claro que nem sempre é possível E nada contra também! Pois utilizo os equipamentos e monto as situações pretendidas. Nesses casos, a busca do espontâneo está na conversa, no bate-papo... em deixar a pessoa ficar bem à vontade para poder relaxar e responder o mais natural e espontâneo possível.

Qual o significado de ter o filme mostrado em um festival tão importante dentro do calendário europeu como o IndieLisboa?

É muita felicidade poder mostrar o filme no circuito Europeu, em um festival tão importante como o IndieLisboa. Me surpreendeu e, ao mesmo tempo, me fez perceber que o filme ultrapassa o “público de cinema” latino americano que conhece o casal. Ou seja, é um filme que também pode ser apreciado em diversos locais, por pessoas de perfis e idades diferentes. E esse alcance me deixa extremamente honrada. Afinal, cá entre nós, todos merecem conhecer e sentir o amor dentro da câmera que Orlando e Conceição deixam transbordar generosamente, nos presenteando com afeto, poesia e inspiração.

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