CAIO BUCKER

Amar é loucura, amor não

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Por CAIO BUCKER

Publicado em 23/12/2021 às 08:25

Alterado em 23/12/2021 às 11:58

Caio Bucker JB

“É o que o corpo grita em cólera ao coração: amar é loucura, amor não! Aos debutantes do tema, meu lema, elimine os batimentos sem razão. Quando amo e não mostro, culpado. Quando mostro e não gosto, enganado. Quando penso e não posso, safado! Meu coração tá do lado errado. É o que escuto vindo do porão: amar é loucura, amor não! Até os fantasmas do avesso mundo, até os ecos da imensidão querem me dar lição. Quando escuto conselhos, me lanho. Quando faço o que quero, me estranho. Quando pulo as etapas, não ganho. Quando jogo sozinho, apanho. Deixa esse verbo quieto, eu não aguento conjugar. Preciso entender o jogo pra depois amar.” Esse poema é do meu amigo e parceiro de trabalho Zéu Britto. Integrou o show Sem Concerto, e foi gravado no EP de mesmo nome, que será lançado no início de 2022. As canções falam bastante sobre o amor, assim como seu disco anterior - Amor de Montar - que poetiza suas mais variadas formas e maneiras de colocação no mundo. Afinal de contas, o amor é realmente algo a se montar. E como ele mesmo diz, são “translúcidas camadas tórridas, sobrepostas, textuais, untadas com a manteiga das horas, flambadas em fogo altíssimo, é o calor dos tempos!”.

 

Macaque in the trees
Obra 'Os Amantes', de René Magritte (Foto: Foto: reprodução)

 

Quando falamos em amor e em amar, podemos falar em todos os âmbitos possíveis. Na última semana, fui assistir meu primeiro espetáculo durante o período de pandemia. Emocionante já pelo fato de chegar, pegar o ingresso, entrar na sala, assistir, levantar e aplaudir. E aplaudi mesmo. Era o solo “Miss Eloquência”, idealizado por Virgínia Martins e Chia Rodriguez, duas mulheres e artistas maravilhosas. Virgínia está em cena sozinha sob a direção de Chia, e desconstroem o amor romântico e a idealização tradicional de amar da sociedade. É uma comédia dramática, num formato stand-up documental, e uma linguagem muito contemporânea. Diria que uma miscelânea que vai do pop ao cult como o amor intenso. Mas o mote é a dificuldade em enxergar uma outra pessoa de verdade, pois a idealização cria pessoas perfeitas, que diminui a realidade, e cega. Em cena, um paradoxo sobre a independência emocional e financeira da mulher, e a fantasia sobre o amor. Amar e ser amada, eis a questão. Achei muito divertido e faz refletir. Em alguns momentos chega a incomodar, toca nas feridas e dá um tapa na cara. Parece que todo mundo quer um mozão, mas como? De que forma? Como é o amor fora das capas de revista e dos filtros do instagram?

Algo curioso acaba de acontecer! Escrevo este texto seguindo meu ritual, já falado algumas vezes aqui no JB: preparo um café, acendo um incenso e coloco uma playlist. Comecei a rascunhar algumas coisas e pegar anotações feitas no bloco que anda diariamente na minha bolsa. Começa a tocar “Façamos (Vamos Amar)”, na voz da rainha Elza Soares e Chico Buarque. Será que é mesmo para eu escrever sobre o amor? Logo eu? Mas como falar de algo tão amplo, subjetivo e objetivo ao mesmo tempo? Aí a canção diz: “Piranhas só por prazer fazem. Namorados por prazer fazem. Façamos, vamos amar.” O amor está presente em todos os cantos, das mais variadas formas possíveis. As expressões artísticas não se contém em comentar e elucidar o tempo todo, atingindo todo mundo. Essa caretice do amor é tema em tudo que é canto, e agora eu fui obrigado a falar sobre ele. Ou sobre amar. Se tem diferença? Tem sim! Amar é verbo, é ação, é prática. O amor é um sentimento. Podemos sentir o amor e não colocar em prática.

Se eu começar a falar do tema amor pela arte, ferrou. São peças e filmes com final feliz, totalmente diferente da realidade. Os escritores escrevem sobre amor em diversas versões. Os cantores então, nem se fala. Tá, vamos pensar um pouco na música. Já em 1916, Pixinguinha compôs o clássico “Carinhoso”, que ganhou uma letra por João de Barro, descrevendo os sentimentos de uma alma apaixonada diante da recusa da pessoa amada. Cartola se queixa em “As rosas não falam”. Tom Jobim comenta sobre o amor platônico em “Este seu olhar”. Vinícius invade as emoções da paixão em poesias cantadas. Adoniran Barbosa conta a história de um sambista que, para provar seu amor, tira a corda do cavaquinho para fazer uma aliança. Caetano prova que “você não me ensinou a te esquecer”, e Djavan deságua em “Oceano”. Paulinho da Viola apresenta um amor com espinhos e novas flores em “Onde a dor não tem razão”. Sertanejos românticos como “É o amor” e “Evidências” estouram nas paradas de sucesso, e um dos motivos é a forma singela e certeira que tocam corações apaixonados. Marisa Monte repete aos quatro cantos “amor, I love you”, a música mais tocada em 2000. Retratos da paixão em tangos, boleros e tcha tcha tchas. O Molejo mostra que todo mundo já entrou numa cilada, e os pagodes mela cueca continuam fazendo o público cantar com a mão pro alto e aquela dorzinha no peito. O batidão solta o verbo com a bunda no chão. O sertanejo universitário, só sofrência. Pabllo Vittar sacramentou que “Piranha também ama”. E se quiser falar de amor, fale com o Marcinho.

Não consigo deixar de citar Zygmunt Bauman. O mestre falou muito sobre a fragilidade dos laços humanos em diversas obras. Em “Amor Líquido”, mostra que vivemos num mundo de incerteza e insegurança em relação à duração da ordem política e à estabilidade de cada um na sociedade. As relações sociais tornam-se cada vez mais mercantilizadas e individualizadas. Não existe responsabilidade mútua, pois a conexão deixa de existir, e é evidente a facilidade em se desconectar de outrem. Para o autor, a qualidade das relações diminui vertiginosamente, e a tendência é que se tente compensar a falta desta qualidade numa quantidade de parceiros, em todos os sentidos. Como exemplo, a quantidade de “amigos” que temos nas redes sociais, algo irreal para uma convivência cotidiana verdadeira. Acho que o amor genuíno se perdeu no tempo. Mas o amor romântico vem se confirmando como algo fadado ao fracasso. Torna-se uma consequência do modelo perfeito de casal e da ocultação dos defeitos devido à uma idealização. E mais: fazem uma divisão de papéis de gênero, transformando o homem em ator e a mulher em recompensa. E vemos isso desde crianças, inclusive em músicas, filmes e desenhos animados, todos com finais felizes. Vejam só! Tá aí a Miss Eloquência que não me deixa mentir. O bicho do amor existe desde o início, muito antes da caverna. É só saber domesticá-lo, olhar de dentro para fora. Continuemos cantando sofrência, se emocionando e vivendo intensamente. Mas acreditem: amar é loucura, amor não.

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