CAIO BUCKER

A lei (não) é para todos

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Por CAIO BUCKER, [email protected]

Publicado em 23/09/2021 às 07:51

Caio Bucker JB

Os artistas mamam na teta do governo. A mamata acabou. Tudo é culpa da Lei Rouanet. Pausa para risos. Respira. Respira de novo porque a situação é bizarra. Somos perseguidos e demonizados como sanguessugas do dinheiro público. Quem somos? Artistas, produtores, realizadores. Tudo que este governo odeia, menospreza, vai contra e faz o possível para não sair do lugar. É assim que nos vêem, mas tudo bem, problema deles. A gente não para por conta disso. Essa coisa de “mamar” é algo comum para os seguidores do presidente, tanto que inventaram uma mamadeira nunca vista. Pura mentira. A verdade é um ataque em cima de produções culturais, censura em obras e projetos, invenções sem o menor sentido para desqualificar profissionais. Tudo isso por rivalidade política ou por ódio ao pensamento criador. Engraçado que até citaram que “não iriam aceitar arte de esquerda”. E desde quando arte tem lado? A arte só expressa um sentimento, reflete momentos e levanta questões que incomodam muita gente. E quando chamam atenção, incomodam muito mais.

 

Macaque in the trees
Charge de Nando Motta (Foto: Foto: reprodução)

 

Há uns dias, uma notícia ganhou destaque: um projeto de games de 4,6 milhões foi proposto pela Secretaria Especial da Cultura, a ser executado pela Secretaria de Fomento. A mesma Secretaria que começou um boicote geral à nação, que disse que a mamata ia acabar, que começou a boicotar projetos, que fez de tudo para adiar uma Lei que poderia vir para dar mais um respiro para a classe artística e seus profissionais que foram os primeiros a parar e até agora vendem o almoço para pagar o jantar. O projeto aprovado sem nenhuma explicação plausível parece ter ligação com o filhinho 04 do presidente. Detalhe: o valor aprovado corresponde à verba executada pelo Fundo Nacional de Cultura em todo o ano de 2020. Ao ser questionado, o Secretário que nos colocou numa Frias disse que “a iniciativa é pautada na capacitação técnica e profissionalizante dos jovens de baixa renda, com o fim de criar condições para que os mesmos possam ingressar no mercado de trabalho.” Ao ser questionado sobre onde a população poderia acompanhar o projeto, um silêncio ensurdecedor. Ele, como sempre faz, apenas usou suas redes para atacar opositores, dizendo que é uma “mídia militante” e com “bizarrices de esquerda”.

Já falei numa das primeiras matérias que escrevi aqui no JB, intitulada “A cultura entrou numa frias”, sobre a extinta Lei Rouanet. Mas vale relembrar: o mecenato é algo que acontece há muito tempo e é um direito de todos. Permite que pessoas e empresas destinem total ou parte do Imposto de Renda para o financiamento de obras artísticas. Certamente existiram muitos problemas no fomento do país, inclusive com prestação de contas, valores superfaturados, panelas entre empresas e realizadores, e tetos absurdos em projetos. Afinal de contas, a Lei foi criada de uma forma muito mais interessante e complexa, mas só foi colocada em prática em parte. Vale relembrar também que o atual secretário da pasta tem finalmente um papel de destaque em sua tenebrosa carreira de ator. Pena que ele faz o vilão contra quem estava ao lado dele, não acredita na liberdade de expressão e chama os próprios colegas de vagabundos. Será que os outros que são vagabundos mesmo, secretário? Que tal começar explicando os 4,6 milhões no projeto de games?

Essa guerra que eles fazem contra artistas e realizadores é algo inacreditável. Não pensam que cultura é educação, é desenvolvimento, é pensamento, é reflexão. Pera, é tudo que eles não querem! Em 2018 o presidente já dizia que “queria manter os incentivos à cultura, mas para bons artistas que agregam valor”. Quem seriam os bons artistas que agregam valor? Ali já começava uma caça aos projetos que abordassem questões de gênero, sexualidade e direitos humanos. As novas regras da Cultura no país passaram a se basear em censura e estrangulamento econômico. Tanto que o governo atual foi o que menos repassou recursos federais ao setor desde 1995. Cerca de duzentos projetos culturais ficaram impedidos de captar recursos via Lei de Incentivo por causa da má vontade e má fé do Secretário de Fomento. E infelizmente, duvido que algo tenha mudado. Quando questionados, atacam, xingam e agridem, mas nunca debatem de forma honesta e consistente. Mais do que uma cortina de fumaça, já ficou claro que o governo e seus comparsas querem levar a cultura do país por um caminho de ufanismo patriótico, moralista, homogêneo e que louva um passado imperial e grotesco. A sorte é que algumas prefeituras e governos perceberam, e se fizeram conscientes do papel mais que essencial que a cultura exerce na sociedade, e assim, andam promovendo a diversidade cultural.

Agora, imagina se um projeto de 4,6 milhões, sem explicações, sem nada concreto, fosse aprovado para algum opositor ao governo? Imagino a gritaria que eles fariam. Uma vez, tentando me atacar, um cidadão me disse que “gay é tudo escandaloso”. Mas já viram algum hetero defendendo o presidente? Pois é. Isso nem vem ao caso. Já está mais que claro que essa corja governa apenas para seus interesses, e podem acreditar, tem muita coisa envolvida. À medida que o pai avança, os filhos vão junto em papéis informais, entre articulações e rachadinhas, investigações e tráfico de influência, tudo isso numa sala repleta de funcionários fantasmas. É óbvio que a lei não é para todos, diferente de como sugeriu o juiz em cima do moro. Como bem colocou Salvador Allende: “Não basta que todos sejam iguais perante a lei. É preciso que a lei seja igual perante todos.”

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