CAIO BUCKER
Ouça sempre os mais velhos
Por CAIO BUCKER, [email protected]
Publicado em 05/08/2021 às 08:17
Alterado em 05/08/2021 às 08:17
Um velho, em seu leito de morte, revela a seus filhos a existência de um tesouro oculto em seus vinhedos. Bastava desenterrá-lo. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, porém, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho duro. Essa parábola é de Walter Benjamin, que, embora eu tenha questões, gosto de ler sua obra. Ele fala sobre "transmitir" e “experiência”, neste caso, passada dos mais velhos para os mais novos, e via narração. Narrar, para ele, é isso: transmitir experiências vividas, relatar e passar adiante informações que tenham alguma importância e significado. São histórias de um passado coletivo compartilhadas por membros de um certo grupo. A narrativa sempre trás consigo uma utilidade, que pode ser num ensinamento moral, numa sugestão prática, num provérbio ou numa norma de vida. Pode-se dizer que o narrador é um ser humano que sabe dar conselhos ao ouvinte.
Nos dias de hoje, e no chamado mundo líquido de Bauman, narrar é raro. Contar histórias também, a não ser as histórias do instagram, que duram pouco menos de vinte e quatro horas. A sabedoria parece estar em extinção. A forma de narrar também se altera com o passar do tempo e em alguns casos, sequer existe. Na época da guerra, por exemplo, as pessoas voltavam caladas e sem histórias para contar, pois as experiências desmoralizadas causavam a ruptura. Aparece muito mais a técnica do que o homem, e a técnica rompeu com o contato humano. O patrimônio cultural passa a não ter valor, pois a experiência não mais o vincula a nós. Sem os narradores, a experiência não é transmitida. Quando Benjamin fala em pobreza de experiência, na verdade não significa a falta de experiências ou a busca por novas experiências, mas sim uma libertação de todas as experiências vividas. ‘’Eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, e que algo de decente possa resultar disso.’’ A pobreza supracitada não é só de experiências, mas da humanidade em geral. Paul Scheerbart fala de uma ‘’cultura de vidro’’, se referindo ao fato das pessoas estarem superficiais, sem se prender a nada – e aqui neste caso, às suas experiências.
No início do período moderno, surge o romance, e isso contribui mais ainda para o fim da narrativa. O romance nem procede da tradição oral e nem a alimenta, e sua origem é o indivíduo isolado, que é outro tipo de experiência que Benjamin destaca. É o individualismo, mundo onde o produto produzido e o homem que o produz não se identificam, e o que prevalece é a ausência de contato entre os seres humanos. Com a consolidação da burguesia, destacou-se a informação, que é incompatível com o espírito da narrativa. Um dos motivos é pelo fato de aspirar uma verificabilidade imediata. Recebemos muitas notícias do mundo com fatos que já chegam impregnados de explicações, e ficamos pobres de histórias e experiências surpreendentes. A difusão da informação tem participação no declínio da narrativa. No texto ‘’O Narrador’’, ele faz considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, e destaca em suas narrativas questões sobre a modernidade capitalista com a intenção de discutir como a arte de narrar entra em declínio no momento que a experiência coletiva - a narrativa - perde espaço para a experiência solitária - o romance. A narrativa e a contação de histórias mergulham a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele.
Diante desse pensamento, lembro do que me falavam quando criança: “ouça sempre os mais velhos”. Acho que todo mundo já ouviu isso pelo menos uma vez. Não pelo fato dos mais velhos saberem tudo, mas por terem vivido mais, terem experimentado mais. Tudo bem que tem gente nova que já viveu cem anos, mas exceções à parte, vamos focar em quem já caminhou mais tempo nesta estrada louca chamada vida. E quando falo em mais velhos, não me refiro a pessoas velhas, mas em pessoas mais experientes. No texto “Aos mestres, muito obrigado”, fiz questão de citar nomes importantes na minha vida e trajetória, pois sempre fiz questão de ouvir, questionar e refletir sobre o que me passavam. E não me passavam por arrogância, mas pela vida vivida e até por sabedoria. As narrativas pessoais são indispensáveis para a construção histórica da comunidade. A tradição oral também é fundamental para conhecermos nossos antepassados. Para mim, ouvir é uma questão de honrar e respeitar a experiência pessoal, as dores e os amores de cada um, independente da idade. Não é preciso concordar, mas quando entrar na mente, pensar sobre.
Lembro de ler escritos do filósofo Cícero, que viveu na Roma Antiga no século I antes de Cristo. Ele escreveu um livro interessante sobre a velhice. Ele analisa aspectos de quem já viveu mais tempo que nós. Considera falsa a acusação de que a idade avançada impeça que se continue à frente dos negócios, até porque, deve-se levar em consideração a maturidade. Afirma que não é a força física, a presteza ou a rapidez do corpo que geram coisas grandiosas, e sim, o discernimento. Penso no caso dos magistrados. Os maiores mestres que tive na vida já estavam perto dos trinta anos de carreira acadêmica. Haja história pra contar! Nesta fase da vida, nada melhor do que reinar uma dádiva dos deuses: a razão. O jovem aprende, mas o experiente entende, ou busca entender. A cultura é a base das novas gerações. A experiência acaba, os experientes se vão. Mas todo dia nasce uma nação daqueles que precisam aprender, crescer, testar e destinar para gerir seu mundo.
Em tempos digitais e tecnológicos, onde a internet deu voz a pessoas que a mídia supervaloriza por motivos discutíveis, torna-se um fato o surgimento de narradores pífios com discursos irrelevantes. O que vemos, muitas vezes, é uma reprodução infundada de discursos baseados em achismos e pensamentos controversos. Existe um olhar estratégico e de certo ponto narcisista, onde o post bem feito é mais importante que os problemas reais do mundo. Claro que existem exceções, e nem estou aqui enaltecendo os mais velhos como se todos fossem perfeitos. Temos um presidente e seus aliados como exemplo. Existem velhos meninos e jovens velhos. A maturidade não surge somente com o tempo, mas com a humildade, o caminho, a razão e o coração. A questão é que, por muitas vezes, só os jovens têm voz ativa e influente na atual sociedade, e quem já viveu essa estrada fica deixado de lado. Isso pode empobrecer a visão do mundo. Minha premissa é sempre ouvir. Escutem as pessoas mais vividas. escutem quem tem um caminho percorrido e mesmo que discordante, pode nos acrescentar muita coisa. Aprender com os jovens é conhecimento. Aprender com os mais velhos, é sabedoria.