CAIO BUCKER

Tradição é tradição

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Por CAIO BUCKER, [email protected]

Publicado em 22/07/2021 às 08:28

Alterado em 23/07/2021 às 09:13

Caio Bucker JB

Eu estava com dezesseis anos e tinha muita sede. De aprender, de conhecer as pessoas, de me enturmar e de adentrar no universo artístico. A primeira vez no teatro foi mágica, num show também. Quando estreei no palco então, uma catarse. Certo dia, numa temporada de “As Eruditas”, de Molière, o amigo e ator João Camargo me convida para a Cantina Donanna, em Copacabana, que era frequentada pela classe artística no pós peça. Fomos nós dois, a dona Jacqueline Laurence e o eterno Nildo Parente. Estava lotado, a fauna e a flora do teatro brasileiro presente, confraternizando sucessos e fracassos, afinal, nada que um bom chopp não resolva. Ao sentar, Seu Nildo faz um sinal, balançando os dois dedos indicadores para cima, e prontamente chegam à mesa um copinho de cachaça e uma tulipa de chopp. Aquele gesto me marcou, e tempos depois, fiz o mesmo. “Isso só vale com Seu Nildo, companheiro!”, disse o garçom. Semanas depois, João me chama para outro point da classe. Desta vez, o La Fiorentina, no Leme. A mesma sensação dos encontros, da celebração e do networking.

Macaque in the trees
Estátua de Ary Barroso na frente do restaurante La Fiorentina (Foto: Foto: arquivo)

Quando entrei na Fiorentina pela primeira vez, fiquei impressionado. Além do público, que lotava o calçadão e o salão, paredes com fotos históricas de grandes artistas e espetáculos, e pilastras com autógrafos de intelectuais e celebridades. No cardápio, divulgação de peças em cartaz e pratos que levam nomes de frequentadores influentes. Ganhei um voucher que dava permuta num prato. Que legal ver a parceria entre a gastronomia e a arte. Pura cultura. Aberto em 1957, é o maior reduto da classe artística no Rio de Janeiro, que se encontra e atravessa a noite. É uma casa de memórias e encontros. Dia desses, a Angela Ro Ro me contou que foi lá que a madrinha do samba Beth Carvalho, lhe apresentou ao Nelson Cavaquinho, numa noite que rendeu até o amanhecer. Em meados dos anos 70, atores e atrizes se encontravam após suas apresentações. Os desempregados iam também, na tentativa de serem vistos, lembrados e consequentemente, arrumar algum trabalho. E isso dura até hoje. Muitos ícones que não estão mais entre nós, eram assíduos dia e noite, noite e dia, como Dercy Gonçalves, José Wilker, Rogéria, Jorge Dória, Agildo Ribeiro, Marília Pêra e Domingos Oliveira. Além de grande parceiro e fomentador da arte, já tendo apoiado mais de 500 espetáculos, o restaurante tem uma ligação muito profunda com o jeito, o estilo e a alma do carioca.

Apoiar projetos culturais vai muito além. Pensar a gastronomia com diferencial sociocultural, é muito importante também do ponto de vista turístico e econômico, pois apresenta novas possibilidades e auxilia no desenvolvimento local. Isso é o famoso marketing cultural, ou seja, toda ação de marketing que usa a cultura como veículo de comunicação para sua difusão, produto ou para fixar a imagem. Ao realizar parcerias artísticas com apoios, permutas e patrocínios, a empresa recebe contrapartidas, como a exposição na mídia, melhoria no relacionamento com o público e funcionários, e a diferenciação no mercado. Também é possível reposicionar a marca, aumentar a fidelidade dos consumidores e obter novos conteúdos para a estratégia de comunicação. Investir em marketing cultural é agregar valores positivos e de responsabilidade social. E ainda fomentar a cultura, incentivar realizadores, e proporcionar um aquecimento do mercado. Resumindo, ganha a empresa, ganha a classe artística e ganha a comunidade.

De um tempo pra cá, tenho a triste sensação de que isso tudo foi se perdendo. Teatros e cinemas cada vez mais vazios. Os shows lotavam, mas o consumo era local e depois, no máximo uma saideira. Vez ou outra os mais tradicionais enchiam, mas o movimento cultural em restaurantes já não era o mesmo há muito tempo. A pandemia enterrou de vez tudo que vinha em morte lenta. Crise financeira, isolamento social, prejuízos gigantescos, e um buraco causado pela falta dos encontros. Falar desses restaurantes que incentivam a cultura é muito mais do que falar de simples permutas e descontos. É falar de encontros. Aliás, este é o principal motivo desse pensamento todo. É dividir tempo e espaço, e nos proporcionar a sensação da presença e do calor humano, o que nos faz sentir acolhidos. A vida é a arte do encontro, já dizia Vinícius de Moraes. Será que foi necessário este momento de limitações para darmos valor à vida presencial? Será que quando as coisas voltarem ao normal, o público vai voltar a frequentar as salas de espetáculos? E depois dos espetáculos, vão todos confraternizar? É muito bonito e emocionante falar da saudade de estar presente, mas na hora do vamos ver, cadê? Eu espero que sim.

A pandemia fechou muitos estabelecimentos icônicos no Rio, e o sindicato do setor disse que, até o meio do ano passado, mais de 30 mil pessoas foram demitidas. O Hipódromo, na Gávea, também parceiro de projetos culturais, e a Casa Villarino, um dos berços da bossa nova, não resistiram. Esta semana, uma ótima notícia em dose dupla: a reabertura com nova gestão do Amarelinho da Cinelândia e do nosso bom e velho La Fiorentina, que retorna repaginado para novas aventuras, mantendo sua excelência. Foi um susto pensar na possibilidade de fechar de vez. O Ivan Mendes disse uma vez que “a Fiorentina não é só um restaurante, mas também um museu”, e é mesmo. É um palco que conserva memórias, nos proporciona encontros e histórias. Vejo a reação das pessoas quando ficam sabendo dessa volta. Um misto de emoção com o gostinho de vitória, por ter driblado a crise e dado a volta por cima. Faz parte da gente, da nossa formação e do nosso imaginário, enquanto artistas e cidadãos que consomem cultura. Que todos se façam presente, se sintam em casa e continuem escrevendo mais capítulos do nosso reduto boêmio da cidade. Afinal de contas, tradição é tradição.

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