CAIO BUCKER
Lado B, lado A
Por CAIO BUCKER, [email protected]
Publicado em 08/07/2021 às 09:12
Alterado em 08/07/2021 às 10:25
Gosto de ir pela contramão. Gosto do sentimento de vanguarda e da inventividade. O famoso “fora da caixa”. Vez ou outra parece até algo transgressor, mas tudo bem. Nada contra os enlatados e os projetos que seguem um padrão regido pelo mercado. Já fiz alguns, inclusive. Mas a sensação de liberdade...ah, a liberdade! Parece mais interessante “ser” do que “ter”. Quem vive de arte sente o prazer da curiosidade despreocupada. O próprio Hegel definiu a arte como “produção humana e social, que se destina à liberdade do pensamento humano, do seu espírito, da sua expressão e criação”. Talvez o grande desafio seja encontrar o meio termo entre o comercial e o autoral, o pop e o cult, o mainstream e o underground, o lado A e o lado B, se é que isso é necessário. Até porque, para os que acreditam no próprio taco, vem naturalmente. Não é uma questão de escolha, de melhor ou pior. É sobre o estilo, perfil traçado e o caminho a percorrer.
Com o surgimento da indústria fonográfica, os primeiros álbuns de 10 polegadas tinham um único lado. Os chamados Lado A e Lado B foram introduzidos na Europa pela Columbia Records com uma gravação de Mendelssohn, e não havia um lado mais importante, visto que as rádios tocavam qualquer um. Depois de um tempo, os “A-side” apresentavam músicas mais comerciais e feitas pensando no mercado e na chance de entrar nas paradas de sucesso, enquanto os “B-side” iam pro lado mais alternativo, experimental, ligado à diversidade e às manifestações espontâneas, logo, mais difíceis de conquistar o grande público. Depois, com a fita cassete e os compactos, a relação entre A e B ficou quase insignificante. Com a tecnologia e a internet, isso deixou de existir de vez, até porque as vendas físicas se tornaram algo vintage. Hoje em dia, tecnicamente, as chamadas “lado B” podem se referir à músicas que não foram incluídas em determinado álbum, mas que podem ser ouvidas junto a um single ou material extra.
Os termos seguem existindo, mas em outra situação. É comum ouvir falar que tal artista é “lado B” demais. Para o “lado A”, normalmente dizem que é algo comercial. A atual descrição de cada “lado” é puramente estética e diz sobre o mercado que está inserido, mas acaba gerando um pouco de segregação. O lado A, ou o mainstream, é o gosto da maioria da população, que alcança grandes gravadoras, altos investimentos, e é muito divulgado pela grande mídia. Já o lado B, ou o underground, é a cena independente, ou quase isso, que normalmente não tem produção dos grandes e acabam fazendo música e arte por conta própria, sem limitação. Acho válido lembrar que a cena underground existe, resiste a qualquer tipo de padrão que tentam impor em sua obra, e merece ser valorizada. Costumam associar o comercial com o que é bom ou com o que vende, e o alternativo como o “doido demais”, “por que fazer assim” e “isso não é rendável”. Mas não é verdade. Tem público para todos os gostos, mesmo que alguns sejam nichados. Nem todo mundo está interessado em letras profundas, mistura de sons e arranjos experimentais bem trabalhados. Basta uma melodia fácil, um refrão chiclete e o número de seguidores nas redes sociais. Isso não serve só para a música, mas para filmes, livros, eventos e peças de teatro. Muito do que alcança grande popularidade é de fato mais simples e demanda menos dedicação e atenção por parte do ouvinte ou espectador. E ser fácil não diminui a qualidade, assim como o contrário não é uma verdade absoluta.
A mim interessa uma discussão sobre o lado B, sobre o underground, sobre ser fora da caixa. São projetos que refletem maior preocupação social, militância e engajamento. Exemplo disso é a contracultura, movimento de contestação social e cultural que encontra-se presente no mundo todo, mesmo depois de mais de meio século do seu surgimento. O discriminado e esquecido lado contribui em prol da melhoria, da expansão e da própria cena que está inserido. É ali que acontece a magia que reflete ações sociais e conscientização sobre os males da sociedade, como discriminação social, de gênero, cultural e de classe, abordando a função de cada membro em fazer o seu melhor e de forma mais contestadora, quebrando paradigmas do modelo social tradicional e trazendo à tona um modelo inclusivo de grupos sociais para comunidades, casas de shows, bares, festivais e eventos no geral.
No Brasil, grandes artistas se destacaram e seguem pela contramão dos costumes tradicionalistas, mobilizando o público e transformando a sociedade com pautas importantes. Os inovadores e polêmicos Jards Macalé, Sérgio Sampaio, Luiz Melodia, Jorge Mautner, Walter Franco e Itamar Assumpção eram considerados os “malditos da MPB”. Além disso, temos o “lado B tropicalista” do grande mestre Tom Zé, e nomes como Arrigo Barnabé, Rogério Skylab e a rainha Cida Moreira. Johnny Alf, Jocy de Oliveira e Luiz Henrique Rosa foram influências na bossa nova. Todos estes, artistas geniais com criações de personalidade e posicionamento, flertando com experimentações e linguagens pouco tragáveis com a grande mídia, com as rádios e com o que a música está acostumada a reproduzir. Muitos deles chegaram a ter um breve espaço nas paradas de sucesso, mas não com a aceitação contínua da grande massa, e então, seguiram suas carreiras sem a atenção do mercado padrão. Revolucionaram com uma linguagem inovadora e inconformada, provocando o pensamento conservador.
Hoje, com o mercado de discos quase falido e uma regência que vem da tecnologia e das novas mídias, os artistas procuram cada vez mais fazer o que bem entendem, sem se preocupar muito com venda ou com o retorno direto. Tem público para todo mundo, para todos os gostos e estilos. Não tem lado bom e lado ruim. Tudo pode fazer sucesso, até porque isso é relativo. Enquanto uns buscam atingir o status de estrela e faturar milhões, outros querem apenas viver dignamente com sua arte. Vivos ou mortos, os “lado B” tem o tempo ao seu lado, e hoje são reconhecidos como gênios, que na verdade, sempre foram. E uma coisa é unânime: são figuras importantes para nossa cultura, principalmente os que viveram numa época de censura, que tentou calar várias dessas vozes. Passaram a ser compreendidos e servem como inspiração para jovens que estão em busca de algo cada vez mais genuíno e fora do comum. E que assim seja. Afinal, arte não tem lado. É só uma questão de ponto de vista.