CAIO BUCKER

Tom Zé, o vira lata na via láctea

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Por CAIO BUCKER, [email protected]

Publicado em 03/06/2021 às 08:29

Alterado em 03/06/2021 às 08:29

Caio Bucker JB

Falar de música é falar em criação. As primeiras manifestações artísticas são tão antigas quanto o próprio homem. Durante a pré-história, os sons da natureza e os movimentos do corpo humano, como o estalar de ossos e articulações, e os batimentos cardíacos, inspiraram o primeiro sinal de música reproduzido. A palavra “música” é de origem grega – vem de “musiké téchne”, ou, a arte das musas. Constitui-se a partir de uma sucessão de sons, entremeados por curtos períodos de silêncio, ao longo de um tempo determinado. Filósofos como Pitágoras e Platão, acreditavam que a música cura os males da alma e até transforma uma pessoa. Mas, de onde vem a criação? Para Gilles Deleuze, o caos é o princípio pelo qual a arte vai se constituir. Não só o caos propriamente dito, mas também o pensamento que escapa a si mesmo. A grande questão é mergulhar no caos e sair dele. Nos dias de hoje, um grande desafio. Cabe aos artistas transformar situações caóticas em criação, tornando-as sensíveis e visíveis. E o pensamento? É involuntário e cria diante de encontros que tirem nossas coordenadas, ou a partir de um problema. Mas, o título é sobre Tom Zé. O que ele tem a ver com isso?

Macaque in the trees
Antônio José Santana Martins, o conhecido e inusitado Tom Zé, nasceu em 1936 na cidade de Irará, interior da Bahia (Foto: André Conti)

Há uns anos, assistindo a um show do mais ácido dos tropicalistas com o amigo poeta Josimar Matos, fomos tomados por uma experiência que nos tirou a respiração e nos levou a um arrebatamento. Tom Zé lançava seu disco intitulado “Vira Lata na Via Láctea”, no Circo Voador, palco dos melhores shows no Rio de Janeiro. Logo na primeira música, ele pedia o bis aos senhores cidadãos que o apreciavam abestalhados. Apresentou sua banda, agradeceu como num final de show, e seguiu, numa dinâmica e intensidade de tirar o fôlego. Horas depois, deu boa noite e desejou boas vindas ao público, saindo imediatamente do palco. Demorei um pouco para digerir que ele fizera o show de trás pra frente. E fez todo sentido. Isso que eu chamo de transgressão. Para quem se considerava vanguardista, aquele abraço! Esse momento rendeu muitas pesquisas, dias e mais dias ouvindo seus discos, e um artigo acadêmico na pós-graduação. Mas fica martelando minhas ideias até hoje. Afinal, “cada passo na arte é sobre o fio da navalha, entre o ridículo e o brilhante”, como ele mesmo definiu.

Antônio José Santana Martins, o conhecido e inusitado Tom Zé, nasceu em 1936 na cidade de Irará, interior da Bahia. Nos anos 60, participou ativamente da Tropicália, se tornando uma voz alternativa influente na cena musical brasileira. Talvez tenha sido um dos primeiros grandes nomes a consolidar o chamado “lado b”. Se afastou do movimento, dizem que “por desencontros ou desentendimentos”, e chegou a ser chamado de “Trótski do tropicalismo”. Nos anos 70 e 80, seguiu seu som experimental em álbuns geniais, porém, sem grande notoriedade. Eis que aparece David Byrne, músico e fundador do Talking Heads, que não se aguenta de curiosidade ao conhecê-lo. Lança as obras de Tom Zé nos Estados Unidos, que se tornam grande sucesso de crítica. Passou a atrair plateias internacionais, e ao lançar o aclamado disco “Com Defeito de Fabricação”, em 1998, vai para o topo, considerado um dos dez melhores álbuns do ano pelo The New York Times. Parece que o brasileiro gosta do aval estrangeiro para começar a prestar atenção.

Sua inspiração como artista surgiu com a figura do “homem da mala”, personagem recorrente no interior do Brasil. Eram mercadores que viajavam pelas cidades vendendo produtos variados, e para “chamar atenção”, promoviam shows em praça pública. Para Tom Zé, “não dá pra fazer música com uma coisa que já está feita”. Embora muitos achem ele o mais sofisticado, o próprio se considera o mais deficiente, se intitulando “o patinho feio da música”, pois, de acordo com ele, “os outros sabem fazer melodias bonitas, não se importam com criatividade, pois já são criação.” Na juventude, Tom Zé se senta com a namorada e tenta tocar violão, mas não consegue. Vai embora frustrado, e decide nunca mais tocar. Em seu livro “Tropicalista Lenta Luta” (2003), narra sobre o ocorrido: “Demorou muito para que eu divisasse, naquele conjunto, os traços de uma fisionomia bondosa. Certo dia, um golpe de vista mais geral mostrou que quando todas as dificuldades se agregavam, justamente então, emergia uma aliada. Ela me tomou pelas mãos e me levou a terreno firme. Ela, com cujo apoio me converterei num profissional: a deficiência”. Esta deficiência o fez criar um possível em sua arte. Deficiência no sentido de falta, que surge quando faz a comparação de sua própria capacidade com a forma da música feita e cantada em seu tempo e espaço. Deleuze sugere ser preciso falar de criação como traçando seu caminho entre impossibilidades. “A criação se faz em gargalos de estrangulamento. Um criador é alguém que cria suas próprias impossibilidades, e ao mesmo tempo cria um possível.” O que Deleuze alerta em sua filosofia, Tom Zé confirma em sua música.

Hoje, aos 84 anos, segue produzindo e transgredindo a um sistema predominantemente careta e conservador. Em uma de suas composições, destaca a “geração Y”, marcada pela internet, e o homem capitalista contemporâneo, visto como um vira-lata, ou um cão faminto e à deriva na imensidão do cosmos. Cria uma jornada de sons, palavras e vozes difusas que denunciam a humanidade, onde se ouve com estranha alegria, uma tragédia anunciada. Mas afirma que, o que salva a humanidade, é que não há quem cure a curiosidade. Faz ainda uma previsão de um futuro marcado por sarcasmo e mais invenções eletrônicas. Espelha o capital como pecado, que seduz, corrompe e destroça o ethos do homem deste tempo. “Imagina a tarefa dessas criaturas quando forem chamadas a governar?”, questiona. Sempre politizado, argumenta a hombridade das visões políticas – o embate entre a esquerda, a grana e a direita. Num mundo onde o conservadorismo reacionário vem se fortalecendo, os gestos de boa vontade e o Papa Francisco ganham tons revolucionários. As pessoas vivem num mundo virtual, e as conversas que eram marcadas pelo calor humano foram substituídas pelos aplicativos. Há uma grande dificuldade de comunicação afetiva, onde todos andam aparelhados por iphones, tablets e notebooks. Seria um disfarce para o antigo medo da solidão? O contato via rede social marca a ausência de comprometimento. Antes, era uma opção. Em tempos pandêmicos, a única.

Junto disso, apresenta um show intitulado “Canções eróticas de ninar”, onde traz assuntos do sexo da forma que era tratado em sua infância. Óbvio que virou disco. Estudou o samba e o pagode, promovendo uma grande liquidação, e compôs uma música exclusiva para a passagem de som dos shows. Ser contemporâneo a Tom Zé é viver e reviver uma crônica do tempo atual, criando estados perceptivos particulares. Recentemente, lançou duas releituras de sua música “A Babá”, em parceria com o cantor Joey Altruda: uma em dub reggae e outra em ska. Composta em 1972, foi lançada em plena ditadura militar. Que coisa, não? O que parece trilhar o caminho da normalidade, vem na contramão da alma do artista, buscando o inesperado. O êxito certamente se deve à constante abertura do jovem octogenário em se reinventar e estabelecer laços com a nova geração, onde seu fluxo é marcado pela liquidez e pela busca por algo na imensidão. Isso tudo sem perder sua identidade, que nos permite pensar e nos inspira a criar com bom humor. Logo ele, que se considerava um artista “deficiente”, mergulhou no caos, saiu dele e tomou frente em sua criação de forma única. Ele é pura filosofia.