CAIO BUCKER

Aldir Blanc: onde a arte é lei

O mestre sala dos mares segue na chuva, de mão no bolso e sorrindo

Por CAIO BUCKER, [email protected]

Publicado em 20/05/2021 às 08:24

Alterado em 20/05/2021 às 08:24

Caio Bucker JB

Dia desses pensei no Aldir Blanc. Acordei, coloquei um álbum da Elis Regina enquanto tomava café e organizava os trabalhos do dia. “O domingo no bar, onde tantos iguais se reúnem, contando mentiras pra poder suportar aí”, cantava “O Rancho da Goiabada”. Me bateu uma reflexão: que triste constatar que um compositor tão incrível, um dos maiores pensadores da cultura popular brasileira, ficou esquecido e terminou a vida sem boas condições. Cometi uma heresia e parei a Elis no meio. Fui para um disco do Aldir. “Resposta ao Tempo” é uma das minhas preferidas, e “O Bêbado e a Equilibrista” é um grito sempre contemporâneo que ouço quase diariamente. Elis e Aldir são tão intrínsecos um ao outro que vibram em sequência nos ouvidos. Veio um sentimento de não ter feito mais por ele em vida. Mas como? Comentei isso com algumas pessoas, e uma das perguntas que fizeram quando citei seu nome foi: “Aldir Blanc...a Lei?” Pois é.

Chegamos em algo comum no meio artístico: um certo abandono de figuras ímpares pela mídia, pelo mercado e pelo público. O sistema é um pouco cruel. Mais importa a figura do artista do que sua própria obra. Aí vem a ironia: um dos maiores expoentes da música brasileira, antes esquecido, agora tem seu nome falado regularmente por conta da lei de emergência cultural e de apoio à cultura. A Lei Aldir Blanc, projeto de autoria da deputada federal Benedita da Silva e aprovado em Junho de 2020 pelo Congresso Nacional, veio para, literalmente, salvar o setor cultural do país, tão prejudicado com a pandemia. E salvar o público também, que neste período se apegou à arte como nunca antes visto. O nome é uma homenagem a ele, um dos primeiros artistas conhecidos do grande público a morrer em decorrência da Covid-19.

Macaque in the trees
Aldir Blanc (Foto: Adhemar Veneziano)

O velho Aldir deixou um legado para a história da música, da literatura e da cultura do país. Carioca com sotaque marcante emitido por sua voz grossa, subir ao palco para cantar se tornou algo raro. O motivo? Uma grande fobia social que o levou à reclusão, por conta de eventos traumáticos: a morte de suas filhas gêmeas e de sua mãe, e um grave acidente que quase lhe fez perder o movimento da perna esquerda. Além disso, a diabetes fez com que tivesse que parar de beber. Para um grande boêmio da zona norte, uma missão bem difícil.

Vascaíno e salgueirense, começou a compor aos 16 anos, a tocar bateria com 17, e logo fundou o grupo Rio Bossa Trio. Médico formado com especialização em psiquiatria, não aceitava os tratamentos de eletrochoque em pacientes do manicômio. Abandonou a profissão para se tornar compositor. Em 1971, conheceu João Bosco, seu principal parceiro musical. Suas primeiras composições foram feitas à distância, via correspondência. Apresentou algumas músicas para Elis Regina, que considerava Aldir seu letrista favorito. Ela se tornou a principal intérprete de suas canções, gravando sucessos como “Bala com Bala”, “O Bêbado e a Equilibrista”, “Dois pra lá, Dois pra cá”, “O Mestre Sala dos Mares” e “Transversal do Tempo”. A parceria da dupla Aldir-João rendeu mais de cem canções. Blanc teve outros parceiros musicais, como Guinga, Moacyr Luz e Carlos Lyra. Embora compositor de grandes sucessos e centenas de músicas, como cantor, gravou apenas dois discos. Paralelo à carreira musical, também foi cronista, com textos inspirados em sua vida nos subúrbios cariocas. Lançou mais de dez livros, e escreveu para os jornais Última Hora, Tribuna da Imprensa, O Pasquim, O Globo, O Dia, e o nosso Jornal do Brasil.

Escrever Aldir Blanc na internet, hoje, significa uma chuva de informações sobre a Lei. Uns diriam que é triste ser lembrado assim. Mas prefiro ver pelo lado positivo. Em tempos sombrios, o mestre maior se torna presente da forma que dedicou a vida: pela arte. Pelo seu legado, seu pensamento, sua genialidade e senso crítico. Pela música e pela poesia. E pela resistência a momentos autoritários no país. A composição era seu maior prazer, e tinha orgulho de acalentar uma fantasia: “morrer feito o Noel Rosa, estendendo a mão para a última letra”. João Bosco disse: “Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui para fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio.” Eu também, João. Feliz de nós que temos o Aldir Blanc para nos salvar.