Por que a comunidade judaica tenta proibir show de Roger Waters, ativista antifascista, no Brasil?
Presidente do Instituto Memorial do Holocausto pediu a Flávio Dino que o ex-Pink Floyd seja proibido de entrar no país
Roger Waters, quando tinha apenas cinco meses de vida, perdeu seu pai para o nazismo. Eric Fletcher Waters era oficial britânico do 8º Batalhão dos Fuzileiros Reais, posto em que era tenente, quando foi morto na Itália, aos 31 anos, durante a Segunda Guerra Mundial.
Eric era fervoroso opositor do regime nacionalista e extremista de Adolf Hitler, tanto que fez parte da resistência contra os nazistas. A perda precoce do pai e a luta dele marcaram praticamente toda a obra de Waters.
Críticas sociais a regimes políticos e ao autoritarismo estão presentes em parte substancial não apenas das composições do britânico, mas também em suas manifestações públicas.
Há mais de 40 anos, ele critica o fascismo, a tirania e o autoritarismo, postura central e histórica para a sua produção cultural e artística.
Embora seja crítico histórico à ideologia, Roger, nas últimas semanas, passou a ser atacado por líderes sionistas por supostamente exaltar o nazismo e profanar o holocausto.
Por ser um conhecido ativista pró-Palestina, Waters já fez sucessivas críticas a Israel e já foi acusado de ter posições antijudaicas.
"The Wall"
As acusações são referentes a um show que ele fez em Berlim, capital da Alemanha, em 17 de maio, onde promoveu seu álbum conceitual The Wall (1979).
Na apresentação, o cantor veste uniforme de estilo nazista, mas trata-se de uma sátira contracenada há pelo menos 30 anos.
Nela, o astro de rock Pink Floyd - uma espécie de alter ego de Waters -, após o processo de abandono pelo pai, morto durante a Segunda Guerra, toma uma overdose e alucina que é um ditador em um comício fascista.
É um papel famoso interpretado por Bob Geldof no filme "Pink Floyd: The Wall", de 1982.
Em 1990, Waters interpretou o mesmo personagem na mesma cidade. Com a diferença de que, há pouco mais de 30 anos, o show “The Wall em Berlim” aconteceu poucos meses depois da queda do Muro de Berlim, que reunificou a Alemanha, e ficou marcado como um dos mais importantes da história do rock.
Antes conclamada, hoje a apresentação tornou-se passível de investigações. A polícia alemã anunciou, no dia 27 de maio, que abriu um inquérito para apurar suposto crime de "incitação ao ódio".
Durante o show, um telão exibia os nomes de várias pessoas mortas, incluindo o de Anne Frank, a jovem judia que morreu em um campo de concentração nazista, e de Shireen Abu Akleh, a jornalista com cidadania palestina e americana, do canal Al Jazeera, que foi morta por forças israelenses em maio de 2022.
O show de Waters em Berlim recebeu muitas críticas em Israel. O ministério israelense das Relações Exteriores afirmou que Waters "profanou a memória de Anne Frank e de 6 milhões de judeus assassinados no Holocausto".
Turnê no Brasil em risco?
Na mesma toada, o advogado Ary Bergher, vice-presidente da Confederação Israelita do Brasil (CONIB) e presidente do Instituto Memorial do Holocausto, pediu ao ministro da Justiça, Flávio Dino, que Waters seja proibido de entrar no Brasil para fazer turnê programada para o segundo semestre.
Na demanda, Bergher pede que, caso o artista entre de qualquer forma em território brasileiro, que ele seja acompanhado pelas polícias Federal e Civil.
Dessa forma, segundo o advogado, "as apresentações serão acompanhadas pelas corporações e providências serão tomadas caso Roger use o figurino semelhante ao de um oficial nazista". A interpretação faz parte do repertório.
Mais tarde, por meio de suas redes sociais, Dino também se pronunciou sobre o caso. O ministro disse que não recebeu qualquer petição sobre uma possível "apologia ao nazismo", durante os shows e que a lei brasileira exige análise caso a caso.
"Consoante a nossa Constituição, é regra geral que autoridade administrativa não pode fazer censura prévia, sendo possível ao Poder Judiciário intervir em caso de ameaça de lesão a direitos de pessoas ou comunidades", considerou Dino.
Ele também citou a lei de apologia ao nazismo:
"No Brasil, é crime, sujeito inclusive à prisão em flagrante, fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Essas normas valem para todos que aqui residam ou para cá venham. Friso o que está na norma penal: 'para fins de divulgação do nazismo', o que obviamente exige análise caso a caso", escreveu.
Dino, no entanto, ressaltou que conhece a obra de Roger.
Conforme planejamento, Waters, de 79 anos, visitará o país com a última turnê de sua carreira, "This is Not a Drill". O show vai passar por seis cidades brasileiras entre os meses de outubro e novembro de 2023 – Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte e São Paulo.
Roger se manifesta
O artista se defendeu afirmando que o figurino mostra sua oposição ao fascismo e à intolerância. Waters afirmou, em um comunicado, que o show em Berlim despertou "ataques de má-fé" de pessoas que querem caluniá-lo por discordarem de suas posições políticas e de seus princípios morais Destacou que os elementos questionados na performance são "uma declaração em oposição ao fascismo, injustiça e fanatismo em todas as suas formas".
Confederação Israelita x Roger Waters
Outro ponto de divergência diz respeito à oposição de Roger ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Em 2018, durante turnê no Brasil, ele gerou polêmica ao protestar contra o então candidato do PSL à presidência da República, às vésperas das eleições daquele ano.
Em setembro de 2022, Waters voltou a criticar Bolsonaro. Se referiu ao então presidente e candidato à reeleição como um "porco fascista", e declarou apoio ao então candidato e hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Ary Bergher, por sua vez, é um fervoroso apoiador de Jair Bolsonaro. Em outubro de 2018, véspera das eleições presidenciais, ele foi expulso do tradicional Clube Hebraica, do Rio de Janeiro, após xingar uma idosa que se manifestava contra Bolsonaro.
O caso terminou com um Boletim de Ocorrência e levou à destituição de Bergher da presidência da Federação Israelita do Rio de Janeiro. Não satisfeito, confirmou em vídeo esse apoio ao ex-capitão, supostamente em nome da Confederação Israelita Brasileira (Conib) e das Federações Israelitas estaduais. Essas atitudes de Bergher foram veementemente condenadas por diferentes setores da comunidade.