CADERNOB

O legado de Nara

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Por LÍDICE LEÃO
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Publicado em 19/01/2022 às 11:19

Alterado em 19/01/2022 às 11:19

Nara Leão Foto: Silvio Viegas / [email protected] / agosto 1983

Nara Leão completa 80 anos hoje, dia 19 de janeiro. O verbo “completa” vem assim, no presente mesmo. Porque Nara está há 80 anos na nossa vida. E na história da música, da cultura e da política do Brasil. Ela morreu cedo, aos 47. Mas seguiu enriquecendo o país. Com sua voz, seu violão, sua coragem. Sua autoridade crescente no cenário musical. Seu charme, doçura e elegância – por que não destacar tais características, que a tornaram tão querida de vários públicos e inspiração para as mulheres da época da Bossa Nova e de todas as gerações que vieram depois?

Tudo isso está no presente que ganhamos no aniversário de Nara: o documentário “O canto livre de Nara Leão”, dirigido por Renato Terra. A produção mostra a trajetória da cantora e compositora e revela a Nara Leão que sempre existiu além da franja moderna e da voz baixa de Bossa Nova. A Nara Leão que não se conformou em cantar apenas o amor, o sorriso e flor. E subiu o morro para sambar com Cartola e Nelson Cavaquinho. E foi para a linha de frente na luta contra a ditadura militar, com o show Opinião, em parceria com Zé Keti e João do Vale. “Podem me prender, podem me bater/ Podem até deixar-me sem comer/ Que eu não mudo de opinião/ Daqui do morro eu não saio não, daqui do morro eu não saio não” substituiu “Quem acreditou/ No amor, no sorriso, na flor/ Então sonhou, sonhou... E perdeu a paz/ O amor, o sorriso e a flor/ Se transformam depressa demais”. Nara também se transformou depressa demais. Sempre.

Nara Leão não tinha medo de mudar. Só avisou à ditadura de 1964 que não mudaria de opinião naquele momento sombrio. E deixou isso claro no palco do espetáculo Opinião e em uma entrevista em que disse que “os militares podem entender de canhão e metralhadora, mas não entendem nada de política”. “Esse Exército não serve para nada (...) O Brasil precisa de mais escolas, professores, hospitais e melhorar a vida do operariado”, prosseguiu. Como resultado, um movimento de artistas e intelectuais da época e até uma poesia de Drummond foram necessários para impedir a sua prisão. Mas não neutralizaram a perseguição que sofreu nos anos seguintes. Então Nara mudou mais uma vez. De país. Assim como muitos artistas e intelectuais da época da mais sangrenta truculência, Nara se exilou ao lado do então marido, o cineasta Cacá Diegues, com quem teve dois filhos.

Que coisa mais linda a Nara mãe. A compositora, cantora, intelectual, que não largava o violão e gravou mais de 20 discos, não largava também os filhos. O documentário de Renato Terra mostra cenas de Nara em conversa com jornalistas, em entrevistas com os filhos no colo, brincando com a filha no escorregador. Também declarações dela assumindo com força e importância o lado mãe. Nara Leão, uma artista libertária – “lindamente namoradeira”, nas palavras da amiga Maria Bethânia – naquele momento era uma mulher casada, cheia de amor e dedicação aos filhos Isabel e Francisco. Quem sempre equilibrou pratos para conduzir uma carreira, uma vida pessoal com alguma poesia e uma maternidade calcada na atenção, no cuidado e no afeto se identificou em cheio com a Nara mãe.

“O canto livre de Nara Leão” é para ser maratonado e indicado. Enche os olhos de beleza, de um Brasil que tinha tudo para dar certo. E deu. Prova disso é que temos Nara Leão para contar essa história. Deu errado também. Basta olharmos para o lado para constatarmos. Mas nada que a resistência herdada da geração de Nara Leão não conserte. Outubro está quase aí.

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Lídice Leão é jornalista, pesquisadora e mestra em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo.

 

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