Ancestralidade na veia
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A sexta edição do festival Caravana África Diversa encerra na noite desta quinta-feira (27), a partir das 19h, no Teatro Dulcina, no Centro do Rio. Firme no seu objetivo, a curadora Daniele Ramalho já enxerga bases sólidas para o próximo encontro entre Brasil e África, num futuro breve. Desde o último dia 22, a programação, integralmente gratuita, uniu artistas do país inteiro, como Ponto BR, de São Paulo, Caixeiras do Divino, do Maranhão, o Terno de Masambike de Nossa Senhora das Mercês e Terno de Masambike de Nossa Senhora do Rosario, ambos de Minas Gerais, tendo à frente a mestra Capitã Pedrina, e a Folia de Reis Penitentes do Santa Marta, único grupo de Folia de Reis da Zona Sul carioca. Também pesquisadores e intelectuais como o museólogo Mario Chagas, a historiadora Monica Lima, o babalorixá Adailton Moreira, para destacar alguns. Aos brasileiros, se juntaram artistas da França, da República Democrática do Congo, de Camarão, Senegal e Burkina Faso.
Parte do calendário da Temporada Cultural França-Brasil, durante as comemorações dos 200 anos de amizade franco-brasileira e dos 20 anos da primeira Temporada Brasileira na França, a Caravana África Diversa abriu o mês da Consciência Negra em Nantes, na França, de 6 a 9 de novembro. Os curadores Daniele Ramalho e Hassane Kouyaté (convidado desta edição), ator e griô de Burkina Faso, estabelecem através da programação uma visão sobre a diáspora africana entendida pelas lentes das identidades culturais. O eixo do festival girou em torno de tradições culturais imateriais, ponto em comum entre todos os participantes.
O público percorreu vários cenários da cultura no Rio, como o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP/Iphan) e o Teatro Cacilda Becker, no Catete, a BiblioMaison, o Teatro Dulcina e o Museu de Arte do Rio (MAR), no Centro, e realizou atividades no Quilombo Cafundá Astrogilda, em Vargem Grande, e no Quilombo da Glória.
Dentre os trabalhos de artes cênicas, o solo de dança-teatro “Masemba”, do artista mineiro, radicado na França, Benjamin Abras, entregou uma atmosfera ritualística no Teatro Cacilda Becker. Há oito anos sem se apresentar em palcos do Brasil, o ator, diretor e dramaturgo, natural de Belo Horizonte, é referência em Afro-Butoh. Benjamin vive há cinco anos na França. No Brasil, participou de trabalhos com o saudoso diretor João das Neves, fundador do Grupo Opinião, e com o coreógrafo Rui Moreira. Paralelamente, fez sua iniciação em religiões de matriz africana.
"O solo ‘Masemba’ é fruto de imersões contínuas em várias tradições, mas especialmente da minha experiência com a Capoeira Angola e a investigação sobre o transe da presença, fazendo reverência às ancestralidades, à força da transformação, à experiência do corpo como lugar da encruzilhada e transformação”, define o artista.
Parte da composição do solo “Masemba” é a pintura corporal, resultante de uma investigação com o povo Omo, próximo do Níger. Nessa comunidade, que se paramenta usando argila, terra e flores, Benjamin viu o corpo adornado com desenhos e grafismos, num território de beleza e transformação. “Masemba” incorpora signos. A palavra Masemba tem um jogo de significados. “Estou trabalhando com o Afro Butoh e, no processo de criação, me alinho com a pintura Zen que estudei durante muitos anos e que é o elemento ‘ma’, em japonês, pode ser traduzido como ‘entre lugar’. O ‘ma’ é uma janela que no centro pode ter um Sol ou uma Lua. No processo da vida, há a incerteza, a impermanência, como prega a Filosofia Zen. E esse processo ele existe dentro da experiência africana. Ou seja, a cultura afro-asiática traz isso pra gente. Ao pé da letra, a palavra Masemba é o plural de Semba, mar. Masemba quer dizer vários mares”.
Protagonista da noite de encerramento, o coletivo Fulu Miziki, natural da República Democrática do Congo, veio de Marselha, na França, onde vivem os artistas, para mostrar ao público o trabalho original surgido do anseio de fazer música. Com visual exuberante, o grupo desfaz qualquer ideia de marketing para se destacar. "O visual é marcante, mas não é o principal. O ponto de partida é a música e a partir daí é que desenhamos as máscaras com os figurinos”, conta Ingau Sombola, o La Roche. Fundada em 1999, a banda tem La Roche, Yenge Wayenge Agler, Nkoyi Somunga Padou, Bosele Bokungako Pitschou, Kalunzitasiko Vakanda Le Meilleur e Bekila Delton Daniel.
Fundado em 1999 por jovens loucos por música, o Fulu Muziki olhou para o lixo acumulado no bairro Ngwaka, na capital do Congo, Kinshasa, e viu futuro. A partir de uma residência artística com o músico Roland Barrett, desenvolveu o conceito de "Música de lixeira". Ganhou o mundo, com uma sonoridade impactante e visual idem. Se define como uma assembléia Eco-Amiga-Futurista-Punk que aponta um futuro em que os humanos se reconciliam com a terra e com eles mesmos. "Nosso objetivo é encorajar as trocas culturais, proporcionando interculturalidade. No lixo, encontramos o que ninguém enxergava", afirma Le Meilleur.
O festival “Caravana África Diversa” reafirma as marcas de origem. Mantém a inspiração que é o pilar desse projeto da curadora Daniele Ramalho. Atriz e contadora de histórias, Daniele fez três formações com o pai de Hassane Kouiyaté, o gigante griô Sotigui Kouiyaté, integrante da companhia de Peter Brook. Sotigui morreu há 15 anos. É referência para gerações de artistas do Brasil, que participaram de suas aulas. “Fiz três formações com Sotigui numa época em que estava começando a contar histórias das matrizes indígenas e afro-brasileiras. Fui ao festival de Hassane, o Yeleen/Iluminação, em Burkina Faso, 2011, contando histórias brasileiras. O Yeleen passou por diversas cidades como Bobo Dialoussou, Pa, Hounde, Koumi. Na volta desta viagem, o África Diversa nasceu. Esta é a sexta edição. A cultura é o ponto de partida, para gerarmos intercâmbios e debatermos temas do nosso tempo. Acredito que podemos colaborar para reconhecimento das culturas africanas da diáspora”, conclui Daniele.
O patrocínio da Petrobras, através da Lei de Incentivo à Cultura, tornou possível a realização do projeto.