Ano Mau

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Por ADHEMAR BAHADIAN

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Ficarão nos assombrando por muitos e muitos anos as faces famélicas da Faixa de Gaza. Imagem a nos recordar Dachau.

Este 2025 nos atemorizou por nos vermos retratados em nossa pior luz. O homem nos assusta por sua capacidade sub-humana. Ano em que o Id subjugou o Ego e o Superego numa tacada monstruosa de incivilidade.

O lodo de Gaza esparramou-se com a decantação do ódio por todos os continentes. Destruímo-nos em megadoses. Não escapou a ONU, não escapou a proteção ao planeta, não escaparam sequer as mais arraigadas tradições do Direito Internacional.

O homem se transformou num réptil a se esconder de drones e mísseis. A sinfonia diabólica da morte arranhou violinos na Ucrânia onde a Paz se faz ao preço da sujeição. Putin desdenha da Europa e a convida ao massacre impiedoso. Trump fez de Maquiavel um vendedor de pirulitos. O crime organizado desafia Estados independentes e se transforma na forma mais ágil e autêntica da tão badalada globalização.

Há algo de podre muito aquém da Dinamarca, embora ela própria se veja ameaçada da nova estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos da América.

Se JOÃO XXIII e a Encíclica “Pacem in Terris” foram o farol do bom timoneiro, a nova estratégia de segurança dos Estados baixa uma espessa e fuliginosa nuvem em nossos mares, inclusive aqui muito próximo de nossas fronteiras.

A Doutrina de Trump lembra a forma e a rima das gozações que fazíamos sobre o Comunismo: “o que é meu é meu o que é teu é nosso”. Claro e alto. A lembrar aquela antiga propaganda de uma vitrola em que um cachorrinho esticava o ouvido diante da legenda “a voz do dono”.

Péssimo ano. Mas nada supera a insânia dos conflitos religiosos com a política. Aqui o Brasil também não fica de fora. Nada mais antirreligioso do que esquecer a frase de Cristo no novo testamento: a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

As três maiores religiões do mundo, o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo, infelizmente, ainda não sedimentaram suas identidades, muito maiores que as suas diferenças. Aos que conhecem a obra de Hans Kung, recordo seu livro sobre esta temática, hoje tema mais alto na agenda da Teologia.

Mas muito poderíamos fazer aqui no Brasil, cujo sincretismo religioso é uma das marcas mais distintas de nossa história, talvez só comparável à nossa miscigenação racial.

Transpor para o Brasil as quizílias religiosas a dividir até pelas armas a devoção a Deus seria um atraso tão ou mais grave do que aqui espalhar o vírus da Peste.

E reconheçamos que estamos a bailar com esta vestal mortal. A intrusão cada vez maior de separação e debate entre cristãos e católicos a se aprofundar no Congresso Nacional tende mais a confundir que a iluminar.

Pior ainda, a tendência a identificar opções econômicas com teorias religiosas hoje já inteiramente superadas em nossos dias. Refiro-me especialmente ao clássico de Weber ao identificar o espírito do capitalismo ao protestantismo. Hoje as agruras de Shylock, a usura e a espoliação do lucro a qualquer preço, nem de longe honram os preceitos de qualquer fé.

Uma leitura simples das primeiras páginas de nossa Constituição permite, melhor do que qualquer texto, entender o mandato que nos cabe como povo e nação.

Ali se diz que somos uma sociedade de mercado e ao mesmo tempo destinados a uma ordem econômica justa. A justiça social é claramente apontada como um objetivo básico. A educação e a saúde, direitos de todos.

Melhor fariam os nossos candidatos ao Congresso se nos informassem como pretendem ver o Brasil nos próximos quatro anos após a eleição, mais próximo de atingir esses mandatos constitucionais.

Talvez um bom começo seria devotar 80 por cento das emendas parlamentares a projetos governamentais da União, ao invés de salpicá-los numa miríade de pequenos currais eleitorais.

Esses temas são os que frequentemente pretendo dialogar com meus leitores. Minha convicção é a de que, no próximo quadriênio, poderemos deixar um Brasil melhor, sem divisões ideológicas e muito menos debates religiosos.

Bom Ano.

Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado