O coronelismo legiferante
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Não sei qual das imagens tenha mais impressionado. Se a ausência dos chefes do Poder Legislativo na sanção presidencial da lei a eximir os assalariados da classe média de pagarem imposto de renda, ou a foto deles, unidos e sorridentes, na rejeição dos vetos presidenciais a dispositivos claramente retroativos na lei de proteção ao meio ambiente brasileiro.
Na lei de isenção parcial do imposto de renda, benéfica a parcela substancial da população brasileira, o Congresso havia votado acima de divergências partidárias, em favor do preceito constitucional de reduzir os desníveis sociais no Brasil.
A lei obviamente só desagrada aos rentistas, aos super-ricos avessos a qualquer acréscimo na parcela devida ao Erário e a defensores de um capitalismo antissocial e improdutivo. Alinhados com o pior do neoliberalismo e seu receituário espoliativo de lorotas já historicamente contestadas, dentre as quais, releva recordar, a de que a redução do imposto de renda para monopólios e oligopólios, seus dirigentes e acionistas, resulta, por decantação, em benefício para a sociedade. Assim como as migalhas da mesa do abastado alimenta o faminto.
O raciocínio é uma transposição para o capitalismo financeiro da mesma lorota da “mão invisível“ do comércio internacional que se autorregularia automaticamente para benefício de gregos e troianos. A história comprova que o comércio nunca foi livre, e basta uma análise superficial das regras implantadas na ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO (OMC) para constatar que a eliminação das leis antimonopólio nos países desenvolvidos se tornaram mais constrangedoras no comércio internacional, tanto nos impedimentos a exportações de produtos agrícolas quanto na transposição de leis de propriedade industrial a tornarem os produtos farmacêuticos em monopólios selvagens. E mais: a obrigar todos os países signatários da OMC a modificar suas leis domésticas de forma a as alinharem com o preceito do acordo TRIPS, que regula a matéria de propriedade industrial. Na minha opinião, o Acordo TRIPS escancara a enorme influência dos “lobbies” da indústria farmacêutica na implementação do “ comércio livre” versão neoliberal. Não é por acaso que pagamos anualmente cerca de 20 bilhões de dólares de royalties em serviços aos Estados Unidos.
Nesta organização da selva comercial, os países em desenvolvimento, dentre os quais o Brasil, foram duplamente atingidos, e ainda, na reorganização trumpista, triplamente afetados, com o abandono unilateral da “cláusula de nação mais favorecida”, com prejuízos evidentes não só para o agronegócio brasileiro, mas também para o empresário industrial, que se vê excluído do mercado americano.
Será difícil argumentar que os novos constrangimentos trazidos por Trump sejam muito diversos dos bons tempos do “coronelismo “ internacional do século 19, conhecido nos manuais de história como “imperialismo“. Trump, coronelzão contemporâneo, revigora o nosso próprio coronelismo brasileiro, evidente na maneira como conduzimos historicamente a transição de sociedade escravocrata para uma sociedade capitalista.
Este capitalismo coronelista parece ter contaminado partidos políticos brasileiros, que confundem o desenvolvimento brasileiro com uma proposta de reversão ao passado colonial, numa variante tupiniquim do MAGA trumpista, aborto traumático dos postulados democráticos e do próprio liberalismo.
A rejeição dos vetos presidenciais acima referida, torna-se exemplo nada edificante deste retorno ao coronelismo desfigurador dos avanços que havíamos conquistado e até de certa forma liderado internacionalmente. Os prejuízos para nossa imagem internacional não poderiam ser mais profundos. A astúcia de um rival externo talvez se contivesse mais do que o nosso legislativo nesta trama ardilosa e - lamento dizê-lo - antipatriótica.
Que tenha sido ainda por cima revestida de uma aparente e inoportuna insatisfação com a designação de um nome, plenamente qualificado, para o Supremo Tribunal Federal, agrava o coronelismo míope. Agrava-o, mais ainda, escolher os dias seguintes ao encerramento da COP-30, quando o Brasil havia a duras penas fechado uma reunião internacional sobre meio ambiente. Registro ainda que, além da imagem brasileira, ficam seriamente prejudicados os interesses do agronegócio, principalmente diante do reacionarismo europeu. Prejuízos em cascata. Assim como dois e dois nem sempre é quatro, a manobra do legislativo brasileiro tende a justificar a interrupção de depósitos voluntários no Fundo de Florestas, movimento que tende a aumentar exponencialmente a preservação da floresta amazônica com a consequência não desprezível de nos tornarmos um dos maiores exportadores de oxigênio do mundo. O impacto desta nova renda auferida com a preservação da floresta nos permitiria em poucas décadas superar o ingresso de renda com a exportação do agronegócio. E para completar, o agricultor francês nos enviará um grande e afetuoso “merci” por termos facilitado ainda mais a oposição ao Acordo União Europeia-Mercosul, com o argumento de que não cumprimos nossos compromissos assumidos naquele acordo. No fundo, na “France profonde”, deve ser dia de festa.
A sociedade brasileira visivelmente esperançosa com a necessidade de superar definitivamente os últimos anos em que se viu arrastada a perigosíssimas manobras do radicalismo político, não deixará passar em brancas nuvens a importância deste novo agravamento do relacionamento entre os poderes Legislativo e Executivo, certamente a ser submetido ao poder Judiciário não por ativismo deste último.
A decisão final virá nas eleições de renovação total da Câmara dos Deputados e parcial do Senado Federal em 2026. Exatamente dentro de menos de um ano de hoje. Neste período, não vislumbro possibilidade de que o exercício de uma politica construtiva seja possível diante de cicatrizes que se reabrem ou de feridas que não se fecham.
A escalada de radicalismo político, que por pouco não nos levou mais uma vez aos calabouços do autoritarismo, foi estancada por decisiva opção democrática, tomada inclusive por parcela majoritária do estamento social, convencida, por experiência vivida, de que apenas a rotatividade do poder constitucionalmente previsto poderá nos garantir o progresso social a que aspiramos.
A cada dia que passa se torna evidente que a opção totalitária não nos abre outras portas, senão divergências patéticas a nos atingir a todos, até mesmo na intimidade de nossas famílias, na opção intocável de nossas religiões, na diversidade orgânica e sistêmica de nossa cultura popular. Já vimos este filme.
Apenas as eleições de 2026 poderão nos ajudar a reconstruir um futuro de que sempre nos consideramos merecedores.
A grande distorção deste futuro a que aspiramos se tornou evidente com a liturgia de valorização, e ao mesmo tempo de ignorância, de um passado ainda insistente em nos fazer acreditar que o melhor já passou. E que a ele temos que voltar.
Nada mais ilusório que este passado. O fascismo com que nos encantamos pouco antes da Segunda Guerra Mundial foi tão destruidor quanto o nazismo e suas xenofobias. A Guerra Fria, a Crise dos Mísseis, o 11 de setembro, as guerras e invasões “restauradoras” no Vietnã, no Afeganistão e no Iraque nos trouxeram muito mais que sangue suor e lágrimas. Nos trouxeram a certeza de que nenhuma nação, por mais forte que seja, pode atribuir-se um “destino manifesto“. Ou um mandato de Deus. Fomos e ainda somos “o Lobo do homem“.
E nosso maior desafio ainda é um Contrato Social.
O retorno a este tempo é uma volta aos cemitérios da insanidade. Coisa de Zumbis.
Infelizmente, ainda há quem creia na Revolução russa, esquecido da sequela de crises do Stalinismo. Não há hipótese de se confundir aspirações ditas de “esquerda”, como saúde e escola para todos, com privação de liberdade. Trump infelizmente está destruindo com insânia redobrada o que ao longo de séculos fez dos Estados Unidos da América um país de inegável parceria na conquista dos mistérios da ciência. Hoje, os Estados Unidos nos oferecem uma parceria contaminada pela evidente submissão.
Neste contexto, chamar de “coronelismo“ o que está a acontecer no legislativo brasileiro é, convenhamos, uma forma antiga de delicadeza.