Os homens sábios e a jovem

Por MARIA CLARA BINGEMER

Era um domingo perfeito como algumas vezes acontece no Rio de Janeiro. Céu azul, sol, temperatura amena. Praias cheias eram resposta das pessoas ao presente que lhes oferecia a natureza com seu esplendor indestrutível. Pisar na areia, mergulhar no mar, relaxar de uma semana cheia de trabalho e esforço. A praia é um espaço livre onde pobres e ricos, gregos e troianos, homens e mulheres partilham uma convivência um tanto única.

Naquele domingo, no entanto, o espaço da praia de Copacabana abrigou mais gente do que de costume. Um volume imenso de pessoas de todas as idades se fez presente para defender desejos e sonhos políticos. A estrela do esplendoroso dia era a democracia, que brilhava mais que o sol de final de inverno carioca. Assim como em outras capitais do Brasil, o Rio de Janeiro se reuniu à beira da lendária Princesinha do Mar para protestar contra a corrupção política.

Era preciso dizer não a projetos como a PEC que protegia políticos eleitos de punições jurídicas sobre delitos porventura cometidos. PEC da blindagem: assim foi chamada. Mas naquele domingo, quando o animo do povo brasileiro se expressava na medida de sua indignação, já era nomeada PEC da bandidagem. O nome não pode ser mais apropriado. Pois bandidos não são os que desejam as trevas e o ocultamento para levar adiante seus secretos compromissos com a iniquidade? Ou se escondem para praticar sem temor seus atos escusos e inomináveis com a proteção de uma lei desfigurada que já não regula positivamente os costumes e as práticas dos indivíduos e setores sociais?

Também esteve ao centro dos protestos o projeto que propunha a concessão de anistia a pessoas condenadas pelo 8 de Janeiro de 2023 por golpe contra o estado democrático de direito. A palavra de ordem soavam fortes no calçadão. Sem anistia!

Ordeira e pacífica, a manifestação fazia poesia social, como diria sem dúvida, o saudoso Papa Francisco, falecido em abril deste ano. Clamava por justiça, e inspirava o ânimo cívico e os sentimentos patrióticos. Marchava e se reunia em pontos chave, consciente e inspiradora.

Quando a tarde deslizava em direção ao crepúsculo, às 17 hs, surgiram na praia alguns dos artistas maiores da música brasileira. Três deles, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, octogenários geniais que personificam nossa música eram acompanhados também por Djavan e Paulinho da Viola. Caetano e Gil vestiam as cores da bandeira: verde e amarelo, resgatando assim o símbolo pátrio como inseparável da democracia em defesa da qual se manifestava o povo brasileiro.

E os sábios artistas começaram a cantar. E o que aconteceu foi belo demais para poder ser descrito. A sintonia e a reciprocidade entre eles e os manifestantes se fez sentir, total e eloquente desde o primeiro momento. As novas gerações, presentes em quantidade significativa, ouviram em suas vozes os desejos mais profundos que os habitavam.

A uma certa altura, as câmeras das emissoras de tv que transmitiam o evento detiveram-se em uma jovem. Olhos claros, cabelos lindamente recolhidos em uma espessa trança, a menina emocionada chorava. As lágrimas desciam por seu rosto enquanto no palco Chico fazia acontecer o som de sua composição Cálice, acompanhado pelos outros.

Ali aconteceu uma epifania. Aquela menina, devido a sua pouca idade, provavelmente não teve demasiado contato com a bela canção. Seguramente não consistia para ela em um hino como o foi para a nossa geração. E, no entanto, o pedido do poeta de que dele se afastasse o cálice tinto do sangue das vítimas da repressão atingiu seu afeto e a emoção transbordou por seus belos olhos. Ela se identificava com o canto de Chico, muitas décadas mais velho. Seu coração batia no compasso da presença e inspiração daqueles artistas que sofreram na vida e na pele os horrores da ditadura. Exilados por longo tempo, experimentaram a nostalgia do Brasil que gemia sob regime de exceção.

A emoção e as lágrimas da menina foram proféticas entre o céu e as areias da praia. Sinal de que as novas gerações não se sentem à vontade com o ódio e a violência política. Desejam, sim, democracia e liberdade. Desejam que a justiça e o direito corram como rio pela vida do povo brasileiro.

Naquele fim de tarde o gênio dos artistas e a emoção da jovem mostraram ao país e ao mundo que a liberdade é o bem maior. Não é aspiração ardente apenas dos mais velhos, já vivendo seu fim de jornada existencial. Pelo contrário, a arte sobrevive ao medo e à corrupção e ajuda a levantar alto a paixão pela democracia naqueles que constituem o futuro da nação. 


Maria Clara Bingemer é professora do departamento de teologia da PUC-Rio