Um país solidário

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Por ADHEMAR BAHADIAN

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A condenação clara e insofismável da tentativa de golpe de Estado, descrita de forma didática pelo procurador-geral da República e sancionada na voz suave porém contundente do voto da ministra Carmem Lúcia, mostrou a verdadeira força da justiça brasileira e sua identidade corajosa com os princípios e regras da Democracia e, mais do que tudo, o papel insubstituível e soberano do Supremo Tribunal Federal como intérprete e defensor da Constituição brasileira de 1988, também conhecida como a Constituição cidadã.

Reafirma também a essência do papel do Brasil como país quase solitário nesta hora em que tibiezas e relutâncias nos levam em marcha batida para um dilaceramento traumático da ordem internacional, capitaneada pelo chefe de governo do até então país-farol das liberdades democráticas que conquistamos na luta contra o totalitarismo fascista na Segunda Guerra Mundial.

Quando falo “conquistamos", me refiro explicitamente ao desassombrado comportamento dos pracinhas brasileiros da FEB, dos nossos pilotos do “Senta a Pua”, ao lado das forças aliadas no teatro de guerra europeu.

Olhando retrospectivamente, não recebemos de forma adequada um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas - como nos havia sido prometido e na última hora esquecido. Mas, é triste e desencorajador constatar que ao longo do século XX os Estados Unidos da América se tenha alinhado a golpes de estado no Brasil, sempre com a desculpa de que ao fazê-lo nos protegeria da tirania.

Não é hora de elencar os movimentos a que me refiro. São sabidos e conhecidos. O mais importante deles, responsável por levar parcela significativa de minha geração ao exílio, ao cárcere, à tortura, à morte e ao desaparecimento até hoje de sua mera existência.

Mas é repelente e sinal de hostilidade gratuita e indecorosa a campanha pessoal de Sua Excelência o Senhor Presidente da República dos Estados Unidos da América contra o Brasil, suas instituições e, sobretudo, contra seu povo, ao insistir em apoiar os criminosos que intentaram mais uma vez submeter o Brasil ao jugo de uma dependência cega aos ditames da política externa americana.

Não temos outras armas senão o histórico de nossa dignidade. Somos e pretendemos continuar a ser defensores dos valores democráticos, conscientes de que apenas o justo desenvolvimento econômico nos poderá fazer uma nação compatível com os direitos a que todos subscrevemos na Carta De São Francisco, carta constitutiva das Nações Unidas.

Forçoso reconhecer que principalmente a partir dos anos 80 do século XX, a partir de Reagan e Thatcher, a partir do Império do Mal, a partir de uma globalização assimétrica e de um neoliberalismo antropofágico chegamos hoje a uma situação intolerável em que os desajustes sociais e econômicos subvertem os mais elementares sentimentos de solidariedade humana.

Estamos nos tornando uma sociedade global de vigaristas. Em que o assalto é universal, cuja única singularidade é o tipo de luva do assaltante. De boxe ou de cetim. E se surrupia a tudo e a todos invocando o nome de Deus, a fazer Sodoma e Gomorra parecerem “resorts de verão”, como Trump sugere para a Faixa de Gaza.

Por incrível que possa parecer, nossa esperança hoje são as armas de destruição em massa. Apenas por temor a elas ainda há um certo pudor em destruir Cartago. Até quando?

Dentro de pouquíssimas semanas, o Brasil abrirá a Assembleia-Geral das Nações Unidas, pomba da paz abatida pela águia ensandecida. É de tradição que o Brasil o faça - prêmio de consolação por nos terem surrupiado o Conselho de Segurança -, mas até essa honraria nos querem retirar. Depois de nós, falam sempre os Estados Unidos da América.

Levamos muito a sério esta tradição. Conheci por dever de ofício os dois lados da elaboração deste discurso que ocupa tempo e dedicação de nossos diplomatas na ONU, o Itamaraty e os demais ministérios no Brasil e sobretudo a Presidência da República, onde o toque pessoal do presidente é de rigor. É dele, e só dele, a autoria real.

E aqui vou me permitir falar um pouco de Lula. Fui seu embaixador em Roma, onde tive o prazer de conversar com ele em suas visitas à Itália. Lula certamente é o político mais inteligente que conheci. E incluo aí políticos que também conheci pessoalmente, como Fernando Henrique, Itamar Franco, Ulisses Guimarães, San Tiago Dantas. Fora do Brasil, o que mais me impressionou dentre os que conheci pessoalmente, identifico Shimon Peres, inteligência brilhante.

Lula, porém, reúne dois atributos essenciais num político: sabe ouvir e tem uma mágica empatia humana, que o permite chamar de companheiro - como vi e ouvi - Luca di Montezemolo, na Itália, e Bush filho, nos Estados Unidos. Talvez só Nyerere, presidente da Tanzania, tenha tido qualidades iguais, mas tenho dúvidas.

E o fato é - meus queridos leitores - que brasileiro acha que encontra um Lula por geração. Engano. Lula é uma raridade politica. Veja no panorama atual. Quem, como ele é tão ouvido e citado? Trump, certamente. Mas Trump não se ouve. Se teme.

Tenho convicção de que o discurso de Lula na AGNU levantará mais dúvidas do que certezas. Ninguém nesta hora tem o mapa da mina. Mas Lula tem bússola.

E vai para as Nações Unidas como representante de um país solidário, recém-liberto de amarras e ataques a sua soberania. Talvez Lula convide a ONU - e a ONU somos todos os países - a sentarmos sem preâmbulos numa mesa e, com ajuda do Secretário-Geral das Nações Unidas - a prepararmos um roteiro para sairmos do impasse em que nos encontramos.

Este papel seria apresentado a uma Sessão Especial do ECOSOC, lá por março de 2026, para finalmente se transformar em programação ou plano de ação a ser adotado na AGNU de setembro de 2026. Uma nova ONU para os nossos netos.

Ingenuidade? Ilusão? Falta de realismo político?

Tudo bem. Mas não custa tentar. E se, ainda por cima, uma cessação de hostilidades for proposta em Gaza, na Ucrânia e outros pontos quentes ate a AGNU de 2026? Mais irrealismo? Pois é.

Que me perdoem meus queridos amigos Mauro Vieira e Celso Amorim por meter, como sempre, aliás, o bedelho onde não fui chamado.

"Good night e good luck."