Curtailment não é culpa das renováveis: é hora de valorizar flexibilidade

Por JEAN PAUL PRATES

O Brasil vive uma contradição. De um lado, ampliamos com sucesso a participação de eólicas e solares, fontes limpas e baratas. De outro, seguimos cortando parte dessa geração – o chamado curtailment – ao mesmo tempo em que acionamos térmicas caras e poluentes para manter o equilíbrio do sistema. Esse paradoxo encarece a conta, pressiona subsídios e alimenta a narrativa equivocada de que as renováveis “atrapalham” a rede.

O problema não está nas fontes, mas na falta de flexibilidade do sistema elétrico e na ausência de sinais econômicos para aproveitá-la.

A experiência internacional mostra que a resposta não é voltar a depender de térmicas inflexíveis, mas acelerar soluções digitais e operativas que já estão ao nosso alcance.As causas principais do corte não são instabilidade ou imprevisibilidade da geração renovável, mas sim a sobreoferta em determinados horários, agravada pela geração distribuída solar e pela limitação de transmissão. Isso exige novas ferramentas de gestão, não uma volta ao passado fóssil.

O Brasil já dispõe de alternativas concretas:

Agregadores e usinas virtuais de energia (VPPs), que consolidam recursos distribuídos e prestam serviços de capacidade e de rede, como já ocorre nos Estados Unidos, Reino Unido e Austrália.
Resposta da Demanda, regulada e testada no país, mas ainda pouco escalada, capaz de deslocar consumo em horários críticos e reduzir cortes de geração limpa.
Armazenamento, com leilões de capacidade previstos, que permite suavizar picos e valorizar energia renovável em horas de escassez.
Tecnologias digitais de rede (GETs), como monitoramento dinâmico de linhas e controladores de fluxo, que aumentam a capacidade de escoamento a custos muito inferiores ao de novas linhas.
Compensadores síncronos e novos inversores, que oferecem estabilidade, tensão e inércia sintética, reforçando a confiabilidade da rede sem queimar combustível.
Em países que avançaram nessa agenda, como o Reino Unido, consumidores já são remunerados por reduzir consumo em horários de pico. Na Austrália, usinas virtuais conectam milhares de residências e pequenas empresas como se fossem uma grande planta flexível. E nos Estados Unidos, a regulação federal abriu os mercados para agregações de recursos distribuídos, ampliando a concorrência.

Aqui, falta transformar pilotos em políticas, e recomendações técnicas em ação. Agregadores precisam ser formalizados em lei, leilões de armazenamento devem sair do papel, tecnologias de rede precisam ser priorizadas em corredores críticos e programas de Resposta da Demanda devem se tornar acessíveis para consumidores residenciais e comerciais.

Eólicas e solares não atrapalham o sistema: o que atrapalha é operar uma rede do século passado, sem valorizar flexibilidade e inovação. Com as ferramentas corretas, podemos reduzir o curtailment, estabilizar a oferta, cortar custos e emissões. Persistir na ilusão de que apenas térmicas garantem segurança é desperdiçar uma oportunidade histórica – e insistir em uma conta mais cara e mais poluente para todos.

 

Jean Paul Prates é Chairman do CERNE, ex-Senador da República e ex-Presidente da Petrobras.