O STF e a justiça social e tributária
A Constituição Federal de 1988 consagrou as conquistas democráticas dos direitos fundamentais e reafirmou a harmonia e independência dos três poderes à luz do sistema de “freios e contrapesos”. O Judiciário, em Corte Superior, passou a ser o Poder constitucionalmente credenciado para coibir ações ou omissões dos outros poderes que afrontem a Lei Maior. E para guarda da Constituição o Supremo Tribunal Federal, dentre outros recursos, dispõe especialmente dos “controles concentrados de constitucionalidade”.
A Constituição também consagrou fórmula decisiva para a redução da injustiça das desigualdades sociais: a progressividade tributária da renda, que inclui lucros e dividendos. É via essencial para o cumprimento dos preceitos fundamentais da Carta Magna, como a dignidade humana e o bem-estar dos cidadãos. Todavia, a atual Reforma Tributária está em risco de falhar nessa que deve ser a mudança mais importante. A progressividade estanca em 11%, quando chega nos 7% mais ricos, 3.841 contribuintes. Aí, quanto mais se ganha, menos se paga. De renda de R$ 4.664,69 é cobrada a mesma alíquota de quem ganha R$4,1 milhões ao mês. A alíquota nominal é a mesma, 27,5%, mas a alíquota efetiva fica menor para quem goza dessa isenção da taxação sobre dividendos.
Três mil milionários, que totalizam renda anual de R$ 150 bilhões, têm R$ 93 bilhões isentos. A renda dos muito ricos tem crescido o triplo da média de 95% dos brasileiros. Contribuintes com ganhos acima de R$ 176 mil por mês pagam, em média, uma alíquota efetiva obscenamente menor do que a dos professores de ensino fundamental, enfermeiros, bancários, assistentes sociais, policiais militares. Como guardião da Constituição cabe ao STF não deixar que ela se transforme naquilo que um magistrado mesmo disse temer e nominou: “um sino sem badalo”.
O Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking mundial da concentração de riqueza e renda, com 48,4% nas mãos de 1% da população. É ultrajante o fato de que, podendo voltar a ser a 6ª economia do mundo, carreguemos máculas como, por exemplo, a insegurança alimentar de mais da metade da população; 100 milhões sem coleta de esgoto; primeiro lugar em homicídios; 180.000 moradias em risco de deslizamento, apenas na mais rica cidade o do país. Sobre esse montante isento de IR, a aplicação de uma alíquota de 27,5%, similar a cobrada dos assalariados, daria ao país uma arrecadação anual de cerca de R$154 bilhões. Hoje, quem recebe R$5 mil por mês tem alíquota efetiva de 9,57%, enquanto rendas acima de R$ 50 milhões mensais têm alíquotas efetivas de R$2,54% em média.
Com a nova lei, a alíquota de 10% será a máxima, para quem ganha R$ 1,2 milhão ou mais por ano. Isto é, o governo se vê obrigado a aceitar isso, ante o entrave de certa maioria parlamentar, esta do tráfico de emendas, a que quer reduzir benefícios sociais, inclusive de educação e saúde, mas não quer mexer nos R$ 860 bilhões das isenções e renúncia fiscal (4 vezes o Bolsa Família), e “atua” contra o IOF. Fundamental mesmo será a progressividade efetiva, com definição de novas faixas de renda e com progressão adequada das alíquotas.
No próprio Portal do STF lê-se: “O papel mais relevante do Supremo Tribunal Federal (STF), no sistema de equilíbrio entre os três Poderes da República, é o de responsável pela verificação da conformidade das leis e dos atos normativos com a Constituição da República. Por meio do chamado controle concentrado a Corte pode declarar a inconstitucionalidade de normas, o descumprimento de preceito fundamental previsto na Carta de 1988 e a omissão na criação de norma que torne efetiva regra constitucional.”
E é a “dignidade da pessoa humana” o fulcro do que preceitua a Constituição, nos “fundamentos” (Art1º), nos “objetivos fundamentais” (3º), nos “direitos sociais” (6º), na cláusula pétrea dos “direitos e garantias individuais” (60). A sociedade aguarda urgente ação do STF, mediante pedido dos legitimados para isso, como a PGR, cobrando dos outros poderes a constitucionalidade da real progressividade para todos os níveis de renda.
Que os três poderes reflitam, como os 250 bilionários de diversos países, que apoiam a taxação progressiva e assinaram carta aberta em janeiro, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, em que declaram: “Nosso futuro é de orgulho fiscal ou vergonha econômica. Essa é a escolha.”
Aqui, vergonha da injustiça-tributária-social e perplexidade ante o risco da inação.
*Sociólogo, pesquisa na Área de Direitos Sociais e Difusos.