As roletas de Trump e o cacife brasileiro

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Por ADHEMAR BAHADIAN

Julia Kristeva, em entrevista no "Le Monde", esta semana, ressaltou nuances não tão óbvias do enlace Trump - Putin no Alasca.

Com sua experiência na leitura psicanalítica, Julia, sutilmente, nos desvela o cenário de um encontro narcísico e suas ressonâncias não assumidas pelos dois mega líderes mundiais. Vale a leitura, que muito recomendo.

Faz anos, quando George Pompidou adoeceu, creio que de câncer, surgiu nas livrarias francesas uma obra de não-ficção “Ces malades qui nous gouvernent” ("Esses doentes que nos governam") a advertir sobre os riscos quando se esconde o verdadeiro estado de saúde de nossos governantes. Mas a bem da verdade, sempre se temia a doença física como, por exemplo, a que abateu Costa e Silva e criou grave crise política por vetos do estamento militar ao vice-presidente civil.

Não é mais assim nos dias que correm. Hoje os riscos são muitos maiores pela associação entre o desmesurado poder enfeixado nas mãos dos presidentes de nações com poderio de exterminar a humanidade e o desequilíbrio emocional muitas vezes suspeito ou mesmo declarado de líderes governamentais.

Antes de seu primeiro mandato, a Associação Psiquiátrica Americana advertiu os eleitores americanos sobre os óbvios sinais de narcisismo de Trump e o risco do que poderia advir para a nação americana. Ninguém deu bola.

Já em seu primeiro mandato, Trump mostrou a que veio, com a clara incitação à invasão do Capitólio, a negação da derrota eleitoral e a alegação de fraude nas urnas. Quase provocou uma guerra civil.

Agora no segundo mandato, Trump rompe com todas as regras do Direito Internacional e promove o caos nos diferentes quadrantes do mundo a lembrar os disparates de Calígula, imperador romano que, além de fazer de seu cavalo Incitatus senador, iniciou a anomalia de governar debaixo do medo. “Desde que me temam, não importa se falam mal de mim” era uma de suas frases mais difundidas.

Faço essas considerações preliminares porque esta semana que termina nos trouxe três fatos que merecem análise cuidadosa e exigem redobrada atenção por tangenciarem, uns mais do que outros, o desequilíbrio mental, embora disfarçado de movimentos políticos.

Refiro-me aos eventos no Congresso Nacional sobre a inimputabilidade de seus membros, a reportagem da revista "The Economist" sobre a reação brasileira ao tarifaço e aos reiterados pedidos do deputado Eduardo Bolsonaro de reintegração ao exercício de suas funções na Câmara dos Deputados.

Sobre o Congresso Nacional e muito especialmente sobre a Câmara dos Deputados, lamento confessar que nela já não reconheço os atributos mínimos de um órgão legislativo, parte essencial da composição política do Estado brasileiro.

Não poucas vezes em minha vida assisti a momentos, dias, meses de crise política no Brasil desde os anos 50 do século passado, quando comecei a me interessar pelos problemas econômico-sociais e políticos do meu país.

Lembro de momentos de alta tensão, de debates rigorosamente assustadores pela veemência política, sobretudo nos anos que antecederam a queda de Getúlio Vargas e seu suicídio em 1954, certamente meu primeiro e doloroso encontro com a dramaticidade do jogo politico e seu impacto na sensibilidade de meu povo, a identificar a perda do líder político com a orfandade paterna.

Forçoso reconhecer que de lado e de outro sucederam-se, nos 50 a 64, os mais brilhantes debatedores de nosso país, sem que nunca chegássemos perto do descalabro que vimos recentemente. A barreira de deputados a impedir que o presidente da Casa assumisse sua cadeira na mesa - ocupada arrogantemente por um parlamentar oposicionista - é profundamente desrespeitosa, sobretudo com a cidadania democrática.

E só não vê quem não quer a sistemática depreciação dos valores de transparência com o dinheiro público com o festival de emendas parlamentares a atingir a casa dos bilhões de reais sempre de forma opaca e insistentemente arrogante. Isto para não falar no desrespeito de frívolos parlamentares a tratar aos coices representantes do Executivo que ali comparecem em atendimento às regras do bom convívio entre os Poderes.

A audácia de pleitear um salvo-conduto contra eventuais admoestações judiciais é a ultima manifestação da alienação parlamentar, diante da crescente revolta da sociedade ao mandarinato jamais visto.

E para enfeitar o bolo ainda surge um presidente de partido da oposição a sugerir que apenas Trump - que submete o Brasil a leoninos ataques à nossa economia - poderia ser nossa “salvação”. Há óbvia necessidade de se reverem as regras que transformaram nossos políticos numa agremiação de interesses mesquinhos sempre voltados à perpetuação dos mais primários sentimentos de espoliação da causa pública. Ou não?

A insensatez que nos ronda se encastela na incompreensível - ou será debochada - pretensão do deputado Eduardo Bolsonaro em pleitear o cargo de parlamentar “at large”, a fim de poder continuar nos Estados Unidos, junto ao cavernoso Steve Bannon, uma campanha antipatriótica de incentivar a intervenção estrangeira no Brasil. Em que rubrica da insustentabilidade política se poderia encontrar justificativa para tanta alienação diante dos deveres e obrigações de um parlamentar?

Já a recente reportagem da revista inglesa “The Economist”, que sugere ao Brasil um papel de liderança na reação ao desmonte da ordem internacional, embora honrosa numa primeira visada, me suscita a lembrança de melífluas toadas a atrair para o penhasco o navegante desavisado.

O Itamaraty não opera sob ilusões. Sabemos muito bem que o que está em jogo é a ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial. E o Brasil terá diante de si eventos internacionais que se aproximam e nos quais temos participação relevante.

O primeiro deles ocorrerá dentro de poucas semanas, quando o Brasil abrirá a Assembleia Geral das Nações Unidas. Discurso sempre esperado porque, em geral, ressalta os pontos nevrálgicos da agenda internacional. E a ele se seguirá, como de hábito, o discurso do presidente dos Estados Unidos.

Minha impressão é a de que o discurso do presidente brasileiro não deveria ir além de uma franca exposição dos males que a desordem internacional vem provocando mundo afora. Não creio que a eventual proposta de o Brasil vir a liderar um movimento de volta ao multilateralismo decepado por Trump nos trará qualquer vantagem. Até porque as regras de comércio enfeixadas na OMC não necessariamente nos deixam saudosos. Principalmente na área de serviços e propriedade intelectual.

Acho, sim, que o Brasil deve sugerir uma reflexão da comunidade internacional sobre a possibilidade de convocação, tão breve quanto possível, de uma Conferência Internacional, sob os auspícios da ONU, para buscar novos caminhos para um desenvolvimento menos desequilibrado no mundo.

À primeira vista, parece nuance anódina. Na realidade, uma proposta de reflexão sobre novos caminhos tende a ser menos confrontacional a Trump. Armadilha que devemos evitar, pois tudo que Trump quer é nos levar a um bate-boca inóspito e irrelevante.

A segunda ocasião que teremos é obviamente a COP-30 em Belém do Pará. Ali sim, nossa liderança se impõe para retomar a agenda do desenvolvimento sustentável e não-agressor do meio ambiente.

Esses dois momentos da agenda internacional nos empurram para uma liderança natural. Não creio que devamos ir mais além.

Até porque, no plano interno, sobretudo nas eleições legislativas que se aproximam, temos a obrigação de restaurar o perfil cívico de nossos Congressistas, antes que nos transformemos definitivamente num Estado-Canalha.

Nos próximos artigos pretendo voltar a esta temática da reconstrução nacional, tema vital para escaparmos definitivamente do circulo de fogo em que estamos envolvidos interna e externamente.
As menções que começam a surgir de repetir o salto desenvolvimentista de JK pode ser uma plataforma de união. Porém, é sempre bom lembrar que JK foi sobretudo o presidente mais democrático que minha geração conheceu. Na agenda dele não cabe autoritarismo e, muito menos, entreguismo.

Que rolem as roletas. Menos a russa.