ARTIGOS
A Ilusão e a Servidão (4) ou O Destino Indigesto
Por ADHEMAR BAHADIAN
Publicado em 29/09/2024 às 08:23
Entranhada na história dos Estados Unidos da América sobrevive até hoje a visão mítica dos primeiros colonos da América do Norte, de que as treze colônias estabelecidas no Novo Mundo teriam um “destino manifesto”, abençoado por Deus.
Este mandato “divino" serviu para que os fundadores dos Estados Unidos se considerassem um modelo político para o resto do universo e, desta forma, fazer do mundo um espelho dos propósitos perseguidos por eles.
A arraigada concepção deste “destino manifesto” confunde e justifica interpretações de que ações internacionais dos Estados Unidos são sempre razoáveis, ainda que possam ser claramente indesejadas por eventuais parceiros que com elas se defrontem.
Na Segunda Conferência de Haia, Rui Barbosa se insurgiu contra a tese defendida pelos Estados Unidos da América de que a criação de um Tribunal Internacional deveria “discriminar" entre juízes de países desenvolvidos e os demais. E além do mais, seguir o modelo da Suprema Corte Americana.
Rui Barbosa, de forma desassombrada, reagiu à pretensão americana e insistiu na igualdade jurídica dos Estados, como princípio fundamental do Direito Internacional.
A contrariedade dos representantes americanos à tese brasileira é registrada na história. A primeira de tantas, baseada no "Destino Manifesto”.
Trouxe o exemplo de Rui Barbosa porque em meu último artigo recordei que em 1964, quando da criação da UNCTAD, Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento, o Brasil que havia sido um dos principais países a apoiá-la e nela encontrar respaldo para reestruturar as regras do comércio internacional, mudou radicalmente de posição com o golpe militar de primeiro de abril de 1964.
Praticamente na antevéspera do discurso do chefe da Delegação brasileira na UNCTAD, o novo governo brasileiro, já empossado o presidente Castelo Branco, o Itamaraty recebeu ordens expressas de mandar que o discurso brasileiro fosse modificado substancialmente.
Indignado com o conteúdo das modificações impostas, o embaixador Azevedo Rodrigues, recusou-se a fazê-las, e, após áspera troca de comunicação com o novo governo, foi destituído de seu cargo e, poucos dias após, demitido do serviço público por uma das primeiras listas de cassados de direitos civis e políticos que passaram a cercear a ação de servidores públicos e políticos.
Como registrei, também em meu artigo de domingo passado, em seu primeiro discurso sobre política externa no Itamaraty, o presidente Castelo Branco condenou a política externa independente, chamando-a de “bifronte”.
Nesta visão, o bifrontismo era sinônimo de afastamento de uma linha política maior a qual se deveria obedecer.
Hoje já não há dúvida que o bifrontismo era uma espécie de missa de sétimo dia da política externa independente, encomendada pelos áulicos do “destino manifesto” defendido pelos Estados Unidos da América, que, a propósito, votou contra todos os princípios adotados pela UNCTAD.
Não satisfeito em cassar os direitos civis e políticos do embaixador Jaime de Azevedo Rodrigues, a afinidade com o “destino manifesto” promoveu um inquérito administrativo em que correram o risco de serem punidos jovens diplomatas que cometeram o erro de defender a soberania brasileira.
Dentre esses, registro os nomes de meus colegas e mestres Jório Dauster Magalhães e Silva e Álvaro Gurgel de Alencar Neto, este último já falecido após uma vida exemplar de defesa inabalável do interesse nacional. Um ás da Diplomacia multilateral brasileira.
Manda a justiça que se registre a atitude equilibrada e corajosa do embaixador Vasco Leitão da Cunha, primeiro Chanceler dos governos militares. Sem ele, o destino manifesto seria a degola.
De qualquer forma, o “destino manifesto” levou a Diplomacia brasileira se ver acusada de “esquerdizante“ ou até mesmo de antiamericana, quando a política externa brasileira, na linha que nos veio do Barão do Rio Branco e de Rui Barbosa, apenas honrou o compromisso com o crescimento econômico, com justiça social, de nosso país. Na UNCTAD. Na OMC. Sempre debaixo da suspicácia americana. Todo e qualquer desvio do “destino manifesto” era considerado “esquerdizante”. Isso, durante décadas, sem a menor cerimônia e, a bem da verdade, até apoiada pelos que confundiam os Estados Unidos da América com o tio Sam.
O discurso de Lula no início desta semana reitera a marca indelével de um país fundador das Nações Unidas, comprometido com a solução negociada de nossos conflitos internacionais. Ao defender uma papel mais ativo do Conselho Econômico e Social (ECOSOC), Lula reconhece a importância dos problemas econômicos e sociais no mesmo nível das ameaças a paz, tratadas mais diretamente pelo Conselho de Segurança, cuja ampliação também se impõe.
Após 79 anos de vida, as Nações Unidas precisa assumir a responsabilidade de se livrar de "destinos manifestos" ou autárquicos e encontrar uma saída para os abusos do poder de veto, fonte de aprofundamento de conflitos em que o terror militar já não respeita sequer as populações civis.
E os conflitos regionais se tornam campos de ensaio para o enlace teratológico entre a inteligência artificial e a erradicação étnica.
Apenas a concertação universal, sob o manto do Direito Internacional esboçado na própria Carta das Nações Unidas, poderá silenciar a cacofonia totalitária, os destinos manifestos e as agressões ambientais a fazer este planeta querer se livrar de nós. Como de um câncer.
As ideologias, inclusive as religiosas, não se mostraram capazes de nos libertar de uma servidão sempre administrada pelo chicote.
Barreiras e muros que lideranças políticas nos propõem erigir contra as migrações humanas, ao mesmo tempo em que defendem uma globalização assimétrica como a nova bandeira do “destino manifesto”, me fazem lembrar a perplexidade dos nossos antepassados primatas diante do monolito a eles apresentado pela genialidade de Stanley Kubrick em “2001: Uma Odisseia no Espaço”.
Destinos manifestos, autarquias autocráticas são pandemias políticas a exigir a vacina da tolerância e da solidariedade humanas. Nosso último trem para a vida em comum. Ou para a vida simplesmente.
Domingo que vem, falarei de Geisel e Silveira. Época em que o “destino manifesto” começou a se mostrar indigesto.
*Embaixador aposentado