ARTIGOS

Do Potomac ao Sena

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 28/07/2024 às 10:13

Alterado em 28/07/2024 às 10:13

Lewis H. Lapham, brilhante ensaísta americano, atribui a Ronald Reagan a paternidade bastarda da Democracia americana, monstrengo plutocrático de hoje.

Nesta contrafação, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da revolução francesa são os primeiros a se espatifarem nos picadeiros de Trump, onde quer que destile sua insânia e sua arrogância brutais.

Lembrei-me de Lewis ao ver ontem, sexta-feira, a abertura das Olimpíadas de 2024, espetáculo, embora destinado a nos recordar o espírito de lealdade e justa concorrência do esporte, pareceu-me uma consagração dos ideais democráticos nesta hora em que guerras de autárquicos bufões mergulham numa rota suicida o planeta.

Há quem critique que no Sena se tenha homenageado John Lennon ou se tenha abusado da “ Última Ceia”. Discordo.

Embora essencialmente francesa no seu bom-gosto apurado, a festa me impressionou por seu sentido profundamente humanístico.

E o Sena se transformou num Rio Iluminista, a começar pela presença de Zidane como um dos condutores da flama olímpica na mesma hora em que os esportistas argelinos jogavam às águas flores em memória de seus compatriotas ali sacrificados.

Se faltou alguma coisa na festa, terá sido uma frase de Camus do "homem revoltado “ ou um dedilhado sonoro rápido de Tom Jobim.

Pois ali se exaltava a criatura humana e seu compromisso com a fraternidade, totalmente distinta da religiosidade de qualquer matiz.

Até porque não são poucas as religiões a nos dever um mea culpa.

Fato é que à beira do Potomac uma outra festa surge. Não sei se Lewis a ela se referirá. Sabemos todos que Kamala Harris não é Joana D’Arc, mas traz de volta ao palanque político a dignidade das mulheres.

Sua disposição em enfrentar as mentiras selvagens de Trump, de assumir que a amizade do povo americano com Israel não se confunde com a cumplicidade com um dos mais vergonhosos , talvez o mais pernicioso político para a causa da paz entre Palestinos e Israelenses, que chegou ao poder em Israel ,diz muito sobre sua coragem política.

Espero- e sei que não sou o único- que em algum momento, quem sabe no encerramento da Convenção do Partido Democrata, Obama se digne a fazer o discurso que todos esperamos.

Critique-se Obama como quiser- e ele certamente merece inúmeras críticas por ter falhado na sua principal promessa ao eleitorado com o “Yes, we Can”.

Amarelou diante de Wall Street e seus mecanismos abusivos que nos levaram à crise financeira internacional mais grave deste século mas a ele não se pode recusar o título de maior orador americano até hoje.

John Kennedy foi um orador que hipnotizou minha juventude nos anos 60 do século passado. Mas, tive o prazer de conhecer e conversar longamente com o seu maior “speaker-writer", Ted Sorensen, em uma de suas viagens ao Brasil depois da morte de Kennedy.

Homem de uma fidelidade a toda prova ao ex-Presidente americano, não lhe foi possível negar a origem dos exemplos que lhe forneci de minhas suspeitas sobre algumas das frases mais famosas do discurso de posse de Kennedy, em que aliterações de grande engenhosidade se espraiaram mundo afora e até hoje são lembradas por todos de minha geração que se preocupam com o bem falar político, uma das artes mais desafiadoras da comunicação humana.

Obama, porém, reúne a genialidade da elocução com a maestria do estilo. Homem que se dedica pessoalmente a escrever os seus discursos mais importantes, tem ainda a seu favor a magia do sincopado de sua oratória cristalina, a dicção perfeita, clara e dramática, sem afetação . Se Obama não fosse quem é ,certamente seria um requintadissimo ator de teatro. Shakesperiano.

Obama deveria fazer na Convenção Democrata um discurso como fez na Universidade do Cairo, talvez um dos mais belos e importantes que já ouvi na vida. Com um discurso semelhante nos Estados Unidos a baboseira tatibitate-esquizoide de Trump vai para o espaço.

Num dos foguetes de seu financiador de campanha com nome musgoso. Musguento.

O espaço acabou mas não posso deixar de registrar com prazer que o Brasil, na conclusão das deliberações ministeriais do G.20 financeiro, sob a presidência do Ministro Fernando Haddad, conseguiu acordo num dos temas mais inéditos da economia internacional: maior equidade na tributação dos super-ricos, em favor da eliminação da fome no mundo.

Falem mal do Lula, mas saibam que sem a oratória e sensibilidade política dele nada de semelhante teria sido possível conseguir. Não é à toa que Obama disse que ele ele era "o cara".

E havia uma ponta de inveja nisso. Ou será que deliro?

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