ARTIGOS

Jürgen Moltman e a vulnerabilidade de Deus

Por MARIA CLARA BINGEMER

Publicado em 06/06/2024 às 11:56

Alterado em 06/06/2024 às 11:56

Acordo hoje com uma notícia por um lado triste, mas por outro carregada de gratidão e esperança. Aos 98 anos morreu o grande teólogo alemão Jürgen Moltmann. Nascido em Hamburgo em 1926 Moltmann fechou os olhos em Tübingen ontem, dia 3 de junho de 2024, Pensava estudar física e matemática, porém a subida do nazismo e a segunda guerra mundial mudaram seus planos. Alistou-se nas Forças Aéreas Auxiliares, mas foi obrigado a integrar a infantaria alemã em 1944. Em 1945, ciente do fim da guerra e da derrota do nazismo, rendeu-se ao primeiro soldado inglês que viu em um bosque sem haver disparado uma só bala.

O encontro com a fé cristã mais profunda, onde nasce sua vocação teológica brota na Bélgica, em um dos campos de concentração que os aliados vitoriosos mantinham com prisioneiros alemães. Completamente desiludido com seu país e com a ideologia que o destruíra distribuía fotos dos horrores de Auschwitz para que os mais jovens tomassem consciência do que ali acontecia. Um capelão estadunidense lhe deu de presente o Novo Testamento e os Salmos. Moltmann passou a participar de um grupo de cristãos e sentiu que, mais do que encontrar a Jesus Cristo, fora encontrado por ele. Sua vocação teológica foi consequência desse encontro.

Voltando a Hamburgo, procurou como formar-se em teologia e o fez em Göttingen, sob a orientação dos discípulos do grande teólogo Karl Barth. Foi muito influenciado pelo livro de Ernst Bloch, “O princípio esperança”. Começou a ensinar teologia e depois produziu inúmeras obras que marcaram definitivamente a teologia cristã do Ocidente e de maneira muito especial, a América Latina. Esteve casado com a teóloga alemã Elizabeth Moltmann Wendel por mais de 60 anos e com ela teve quatro filhas.

Tive a graça de encontrar e conversar com esse homem cheio de saber, simplicidade e simpatia em duas ocasiões das inúmeras em que esteve no Brasil. Sua obra me atraiu desde os estudos de graduação em Teologia. A várias delas li, com várias delas me formei. E sobretudo ensinei e orientei trabalhos acadêmicos sobre sua obra em nível de mestrado e doutorado.

A meu ver, entre tantas contribuições que deixou na teologia contemporânea, a mais importante é a da fé na vulnerabilidade de Deus. Seu livro “O Deus Crucificado” resgata a cruz de Cristo como chave de compreensão do mistério do Deus cristão e demonstra que os sofrimentos da humanidade que parecem sem sentido são abraçados a partir de dentro pelo Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo. Essa revelação atinge seu ponto álgido na narrativa da Paixão, onde entregando o Filho, o Pai se entrega também e envia o Espírito que abre o futuro e torna possível a esperança.

Em dois livros posteriores, “Trindade e Reino de Deus“ e “O caminho de Jesus Cristo”, o teólogo de Tübingen aprofunda essas reflexões. O Deus da Revelação não é um absoluto silencioso e distante em um céu abstrato, que não se envolve com as angústias e desejos humanos. Pelo contrário, trata-se de um Deus vulnerável, com entranhas de misericórdia que vibram como cordas musicais ao ritmo das dores humanas. Os horrores por ele presenciados durante a guerra se transfiguram nessa teologia que apresenta um Deus vulnerável e apaixonado, que assume a dor do mundo juntamente com suas criaturas, realizando assim a salvação.

Para a teologia latino-americana essa reflexão foi de fundamental importância. A Igreja do continente que procurava caminhos para viver a opção pelos pobres através de uma maior inserção junto às vítimas da injustiça e da opressão dialogou fecundamente com o teólogo alemão. Entre eles, Jon Sobrino que escreveu uma Cristologia a partir das vítimas foi talvez o mais influenciado por Moltmann. Igualmente Leonardo Boff e outros foram grandes interlocutores seus nas buscas de novos caminhos para pensar e comunicar o mistério de Deus no exercício teológico.

Diante do mal no mundo, diante do indizível sofrimento de tantas e inumeráveis vítimas, Deus não age estrepitosamente. Mas abraça e assume tudo isso por dentro. O que não é assumido não é redimido. Tudo foi assumido, portanto tudo está redimido. Qualquer outra explicação sobre qual é o lugar de Deus quando o justo sofre, quando o inocente é torturado, nas próprias palavras do teólogo, “o transformaria em um demônio”. Por outro lado, se Deus está com e na vítima que sofre injustamente, assegura-lhe a salvação e o triunfo sobre o algoz. E anuncia para um mundo sofredor que não há nada que esteja fora de Deus, uma vez que Deus abraçou e assumiu tudo por dentro. Desde aí vem seu poder: o poder do amor que não se desvia de nada e traz a esperança como futuro para a humanidade e a criação. E este poder garante que nada se perde: nem uma lágrima, nem uma dor, já que Deus mesmo as chorou e as sentiu em sua paixão e cruz.

Um sinal sensível, sacramental, da influência de Moltmann na teologia latino-americana apresenta comovente visibilidade quando do massacre da comunidade jesuíta em El Salvador. No quarto de uma das vítimas, o Pe. Segundo Montes SJ, foi encontrado o livro de Moltmann em espanhol, “El Dios Crucificado”, manchado do sangue derramado no martírio da caridade pelos pobres do pequeno país da América Central. O livro se encontra hoje em exibição juntamente com outras relíquias como os paramentos com os quais Monsenhor Romero foi assassinado durante a celebração da missa. Jürgen Moltmann com sua teologia deixou marca real e profunda no discernimento daquela comunidade que deu a vida pelos mais vulneráveis daquele país.

Deus acolhe nesse momento seu servo fiel e dedicado. Que descanse em paz e interceda por nós. A glória que vislumbrou na face do Deus Crucificado agora brilha plenamente para ele enquanto o abraça na vida plena e sem fim. Damos graças a Deus por sua vida e seu legado.

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