ARTIGOS

Velhacas velharias. E a fé

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 02/06/2024 às 09:34

Alterado em 02/06/2024 às 09:34

Semana de velhacas velharias e artimanhas diversas. Começo pelo choro patológico de Trump diante de uma acachapante derrota por um júri popular.

Não sei se vocês sabem, mas Trump mereceu dois alentados volumes editados pela Associação Psiquiátrica Americana sobre os riscos dos traços doentios de sua personalidade sobre a sociedade americana e para o mundo em geral. Isto foi antes do primeiro mandato, quando Trump ainda não havia soltado a franga, como soltou desde então.

Muito, senão tudo, em Trump é trágico, antes de ser ridículo. Sua arrogância frente a qualquer manifestação, seja de quem for, diante das choramingas, do chove-mas-não molha permanente de suas intervenções, sempre a se considerar um objeto do ódio alheio, já sequer atraem a atenção dos grandes canais de televisão em Nova Yorque.

Foi assim agora, no Trump Plaza, quando apenas a Fox News ficou até o fim da arenga narcisista de Trump, misturada com seus ataques sem base ao sistema judiciário americano. Saíram todos e creio que muito breve Trump estará falando para as paredes, talvez brancas, do nosocômio.

Todos nós devemos agradecer às cadeias (palavra certa neste contexto) americanas por nos pouparem deste histérico-histriônico. Pretendo vê-lo derrotado em novembro. Até lá.

A segunda velhacaria, também já não nos assombra, mas choca por sua deslavada hipocrisia e sua insistência em nos fazer crer na honestidade de seus propósitos.

Na realidade, o tema também está vinculado, ainda que indiretamente ao anterior, pois tem óbvia relação com o objeto oculto da força financeira eleitoral de Trump. Refiro obviamente ao neoliberalismo e seus magnatas, cada vez mais a favor de uma sociedade desigual, na medida em que o lucro da patota mercantil continue a fermentar.

Confira a indecência de seguradoras de saúde particulares a ameaçar a suspensão de tratamento de seus associados com patologias diversas que impliquem tratamentos continuados. A manobra, por enquanto suspensa por negociações com as autoridades, apenas revela o que sempre se soube: que o seguro protege mais o segurador do que o segurado.

Não é por outra razão, que as seguradoras são reticentes em aceitar crianças com espectro de anomalias do desenvolvimento emocional ou intelectual e aumentam sem dó as contribuições de associados acima dos 60 anos, não importa o número de anos que este mesmo associado tenha contribuído com suas mensalidades para os cofres do segurador.

A tendência natural desta política é fazer com que apenas associado com capacidade financeira muito acima da média possa beneficiar-se de uma medicina cujo custo esteja na fronteira da apropriação indébita. Indevidamente.

Mais uma vez estamos navegando nas mesmas ambivalências do raciocínio neoliberal, profundamente antagônico aos preceitos constitucionais inscritos na Constituição de 1988, que, muita gente ilustrada quer ver pelas costas ou pelo menos devidamente decepada de seus direitos de proteção à saude e à educação. Gente finíssima.

O terceiro - e que deixei por último nesta crônica de velhacarias - fato que me chamou a atenção nesta semana, que também viu uma Marcha com Cristo de dimensões absolutamente identificadas com a crença de nosso povo, foi a objeção de parcela substancial da Camara dos Deputados à vacinação obrigatória contra a Covid em nossas crianças de menor idade.

Aqui, permito-me fazer uma advertência aos que me lêem hoje, não costumo escrever sobre o Congresso Nacional. Mas, recentemente o número de vezes em que me defronto com decisões ou votações surpreendentes ou visivelmente incompreensíveis -como a que recentemente permitiu a propaganda inverídica por plataformas de aplicativos durante a campanha eleitoral - me obrigam a dar minha opinião para que o silêncio não pareça consentimento.

Por razões diversas, já do conhecimento de todos, o Congresso Nacional hoje é francamente de natureza no mínimo oposicionista ao Executivo eleito. Até aí tudo bem, tudo normal como disse o oficial de plantão na proa do Titanic ao comandante do navio meia hora antes deste ser rasgado pela quilha de um icebergue.

O que não é normal nem aqui nem na Transilvânia do Drácula é uma obstrução a um programa de vacinação que poderá salvar vidas de crianças inocentes, incapazes de manifestar seu desejo de viver em paz e sem sequelas desde os primeiros anos de vida.

Ouço dizer que o presidente da Câmara tentou tirar o tema de pauta, mas que no final das contas o assunto está sob consideração da Comissão de Constituição e Justiça, a mais decisiva na avaliação da compatibilidade de projetos legislativos com a Carta Magna do país a que todo Parlamentar, aliás, jurou defender no ato de sua posse.

Sinceramente, acho descabida a ideia. Acho surpreendente que dela se cogite como se fosse questão “intra-muros”. Acho um escárnio que se debata o tema sem audiências públicas e sem o contraditório das melhores associações médicas deste país.

Mas acho sobretudo um movimento atemorizador que em tudo e por tudo nos faz lembrar de decisões infaustas tomadas durante a Pandemia da Covid neste país, onde 700 mil famílias perderam entes queridos por falta de vacinação.

Perseverar nesta trilha, sabendo o que hoje sabemos, sobretudo se a motivação desta eventual proibição de vacinar nossas crianças tenha o viés maléfico da política partidária, não hesitaria em dizer que algo muito demoníaco se instala em nossa capacidade de amar.

Amar ao próximo, mandamento maior do cristão. E que deveria ser a bandeira maior de marchas ou passeatas de um povo em busca de melhor destino.

*Embaixador aposentado