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O Irã amedronta Israel e golpeia o "ocidente"

Por JOSÉ LUÍS FIORI

Publicado em 20/05/2024 às 12:15

Alterado em 20/05/2024 às 12:16

Na noite de 13 para 14 de abril de 2024, o mundo assistiu a algo surpreendente e inusitado: o bombardeio aéreo iraniano do território de Israel, como resposta ao ataque israelita ao consulado iraniano de Damasco, na Síria, que matou sete oficiais da Guarda Revolucionária do Irã. O Irã utilizou 200 UAVs, 150 mísseis de cruzeiro, 110 mísseis balísticos superfície-superfície Shahab 3, Sajil-2 e Kheibar, e mais 7 mísseis hipersônicos Fattah-2. Foi o maior ataque de drones da história, lançado a partir de vários pontos do Oriente Médio, incluindo a Síria, o Iraque, o Líbano e a parte do Yemen controlada pelos Houtis. Israel declarou ter abatido 99% dos mísseis e UAVs que foram lançados, mas não houve nenhuma comprovação, e muitos especialistas militares duvidam dessa informação. Assim mesmo, Israel contou com o apoio da Força Aérea do Reino Unido, dos Estados Unidos e da Jordânia para interceptar os projéteis, e com a assistência da inteligência americana na localização e antecipação dos alvos.

No balanço final, entretanto, há consenso de que foi uma vitória estratégica e simbólica do Irã, sobretudo quando se tem em conta que o Irã anunciou aos governos dos EUA e da Turquia, pelo menos, sobre seu ataque, e utilizou – na maioria dos casos – drones muito lentos e ultrapassados tecnologicamente. Apesar disto, seus drones e foguetes chegaram até Israel e atingiram vários objetivos militares, sem ter matado nenhum civil, aparentemente, nem ter destruído ou visado nenhum equipamento civil de Israel.

Afora isto, o Irã obrigou Israel a gastar mais de 1 bilhão de dólares em poucas horas, ao utilizar seu famoso sistema de defesa antiaérea Iron Dome, permitindo que os persas o localizassem e o mapeassem para eventualidade de futuros ataques. Mapearam simultaneamente as bases utilizadas por norte-americanos, britânicos e jordanianos, o que talvez explique a reação temerosa e a fragilidade da resposta que foi dada uma semana depois pelos israelenses.

De outra perspectiva, o ataque persa atingiu em cheio a crença na invencibilidade militar israelense e, ao mesmo tempo, enviou uma mensagem ao resto do Oriente Médio, revelando uma capacidade de dissuasão iraniana que era desconhecida até então, com relação a Israel, mas também com relação aos seus demais concorrentes geopolíticos dentro do Oriente Médio, como é o caso de Turquia, Emirados Árabes, Jordânia e, em especial, Arábia Saudita, que já refez rapidamente seus cálculos estratégicos e retomou suas negociações em torno de um “acordo de defesa” com os Estados Unidos, envolvendo provavelmente o reconhecimento de Israel. Além disso, os iranianos demonstraram possuir capacidade balística de atacar e destruir as bases militares que os Estados Unidos mantêm na região, podendo inclusive atingir o continente europeu.

Ou seja, resumindo: o panorama militar do Oriente Médio mudou radicalmente depois da noite de 13 para 14 de abril de 2024, e todos os cálculos estratégicos dos principais atores desse tabuleiro geopolítico terão que ser refeitos, porque se trata de uma mudança radical e irreversível. Para compreender a dimensão desse impacto, entretanto, é preciso recuar no tempo e relembrar a relação da Inglaterra e dos Estados Unidos com a invenção, criação e sustentação militar e financeira deste “microestado”, que possui um território que é metade do estado do Rio de Janeiro, e uma população que é bem menor do que a do Grande Rio. Com um território sem nenhuma relevância geoeconômica, mas que Inglaterra e Estados Unidos transformaram numa espécie de “anão atômico” com a pretensão de ser um “povo escolhido”, mas que é na prática apenas um “bibelô geopolítico” anglo-americano, na sua luta pelo poder global. Aqui, contudo, é necessário fazer um pequeno flashback histórico.

A proposta inicial de criação do Estado judeu é atribuída normalmente ao jornalista austro-húngaro Theodor Herzl, e ao seu livro O Estado Judeu, publicado em Viena em 1897. O mais provável, no entanto, é que sua proposta tivesse caído no mesmo vazio de várias outras “desilusões nacionalistas” do século XIX, se não tivesse se transformado numa válvula de escape dos europeus com relação aos judeus, no momento em que Arthur Balfour, o ministro de Relações Exteriores britânico, declarou em 1917, “que o governo de Sua Majestade encarava favoravelmente o estabelecimento, na Palestina, de um lar nacional para o Povo Judeu”. Uma declaração que se transformou num projeto concreto em 1922, quando a Liga das Nações concedeu à Inglaterra um “Mandato Internacional” sobre o território da Palestina, que era então habitada por uma maioria árabe e muçulmana, com a participação de apenas 11% de judeus, porcentagem que foi aumentando com o estímulo dos britânicos.

Foram os ingleses, portanto, que induziram a primeira grande onda migratória de judeus europeus na direção da Palestina, entre 1922 e 1935. Como está acontecendo agora novamente, depois da decisão do Parlamento inglês de despachar para Ruanda, na África, os novos “judeus” ou refugiados árabes e africanos que aportaram na Inglaterra, sobretudo depois do ataque anglo-americano ao Iraque em 2003. E foi esta imigração induzida dos judeus europeus que provocou a primeira grande revolta palestina massacrada pelos ingleses entre 1936 e 1939. Foi ali que começou a resistência palestina que se mantém até hoje, mas que adquiriu outra intensidade depois que os ingleses decidiram se desfazer do seu “Mandato Internacional”, em 1947, começando a articular o apoio ao seu projeto de criação de um Estado Judeu, através de uma decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas. Decisão que foi tomada no dia 29 de novembro de 1947, sob forte pressão dos Estados Unidos, e assim mesmo, por apenas 33 votos a favor, 13 contra e 10 abstenções. A ONU havia sido recém-criada e seria muito difícil que pudesse tomar uma decisão desta importância e gravidade se não fosse pela intervenção, quase imperativa, das duas grandes potências recém-vitoriosas na Segunda Guerra Mundial - Inglaterra e Estados Unidos -, estes, no caso, empoderados pelo “sucesso” de seu ataque nuclear contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki.

Assim nasceu o Estado de Israel, no dia 14 de maio de 1948, e sem o apoio de Estados Unidos e Inglaterra, ele, recém-criado, não teria conseguido vencer sua primeira guerra contra os Estados árabes do Egito, Síria, Líbano e Jordânia, já no ano de 1948. A guerra durou um ano e terminou com a vitória de Israel e a anexação israelita dos territórios da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, além da entrega da Faixa de Gaza aos árabes, onde haviam então se refugiaram cerca de 700 mil palestinos expulsos de suas terras pela Resolução da ONU n. 181. Depois disto, ainda houve a Guerra dos Seis Dias, em 1967, e a Guerra do Yom Kippur, em 1973, vencidas por Israel, sempre e de novo com o apoio decisivo e incondicional, financeiro e militar, de Estados Unidos e Inglaterra. E foi por decisão dessas duas potências que a França repassou a Israel seu “segredo atômico”, aparentemente, logo após a Guerra dos Seis Dias.

Esta história nos ajuda a entender melhor a relação umbilical que se estabeleceu através do tempo, entre os israelenses e seus criadores e tutores anglo-americanos. O apoio incondicional dos EUA e da Inglaterra foi o grande responsável pela “invencibilidade militar” de Israel, desde sua primeira vitória contra os árabes em 1948. E é esta “relação carnal” entre os três países que explica a forma violenta e incondicional com que os Estados Unidos e a Inglaterra reagiram frente ao Hamas em 7 de outubro de 2023, apoiando inclusive o massacre do povo palestino da Faixa de Gaza, até o momento em que a selvageria israelense começou a ameaçar a tentativa de reeleição de Joe Biden. Uma reação raivosa que se repetiu frente ao ataque iraniano da noite de 13 para 14 de abril, porque, neste caso, a demonstração de fragilidade de Israel representou também uma grande derrota para as duas potências que tutelam o Estado Judeu, e que são na realidade, o “núcleo duro”do “império militar do Ocidente”.

 

PUBLICADO NO BOLETIM N*5 DO OBSERVATORIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI

Maio de 2024