ARTIGOS

Um porto muito pouco alegre

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 19/05/2024 às 08:45

Alterado em 19/05/2024 às 08:45

Impossível quedar-se alheio ao fenômeno climático a fazer do Rio Grande do Sul uma Veneza patética, psicopata e de nós, brasileiros, personagens de uma novela de Gabriel Garcia Marques, hipnotizados diante de cavalos que na véspera permanecem como galos nos tetos de zinco e no dia seguinte hospedam-se no terceiro andar de um imóvel a mirar pela janela o conforto do inesperado condomínio.

Já não é de hoje que circulam por essas terras e, outras também, pragas que parecem verdades infringentes do velho bom-senso e se ajustam ao coro de insanidades e de “fake news” plantadas como as, faz muito pouco, teimavam em afirmar ser a terra plana.

Depois de quase três anos de uma Pandemia a enlutar setecentas mil famílias, seria possível pensar que bruxas ou espíritos aziagos estariam a remexer seus caldeirões de malefícios afim de nos purgar como se fôssemos a Sodoma e Gomorra dos tempos modernos.

Surgem em muitos de nós os temores mais assustadores de nossos pesadelos e há uma resposta anárquica de nossos nervos estressados por tudo que nos últimos anos temos vivido como ameaças cotidianas a nosso direito elementar de viver em paz.

Felizmente , a mobilização imediata Brasil afora de uma rede de solidariedade literalmente levou a nossos patrícios gaúchos conforto e apoio numa hora em que parecíamos amarrados a um ódio incivil a nos assustar tanto ou mais do que fenômenos raivosos de uma natureza ultrajada. Estuprada.

E de tal magnitude foi o movimento de solidariedade a nossos compatriotas que se tornaram indecorosa e aviltante as ainda espúrias manifestações de indiferença e até de hostilidade a esta catarse em que a cidadania brasileira deixou de lado quaisquer ideologias em nome desta ou daquela natureza para se concentrar na tarefa maior de abraçar seu compatriota.

Talvez ainda não tenhamos apreciado em toda sua profundidade os passos gigantescos com que a sociedade brasileira não só fechou a porta do desespero, mas também passou a trilhar uma nova estrada a nos levar a todos a um mundo melhor. Pois foi com este movimento de solidariedade que reassumimos nosso verdadeiro e histórico caráter nacional.

Talvez, igualmente, tenhamos compreendido que estamos a viver um dos momentos mais perigosos e atemorizadores desde o fim da Segunda Guerra Mundial em que de um lado se esboroa a ordem internacional criada em 1945 e de outro se tornam palpáveis a insanidade e a irresponsabilidade humanas no tratamento que dispensamos ao planeta que nos abriga.

Estamos, queiramos ou não, sendo cobrados pela astúcia com que nos fizemos de parvos idiotas ao acreditarmos que a espoliação planetária e a injustiça social seriam um eterno parque de diversões inabalável diante de nossa cupidez.

Países como o Brasil, para ilustrar um ponto que se expande por continentes, desde sua mais primitiva colonização viveu e sofreu o impacto de uma transferência de recursos assimétrica sempre negada e ,pior até ,nunca reconhecida pelos senhores do poder absoluto seja da moeda ou da pólvora. Mesmo assim, até os senhores das guerras, como estamos a ver com intranquilidade, se aproximam perigosamente de uma disjunção em que a solução marcial se torna mais dramática por seus efeitos do que por suas causas.

Neste cenário, minha esperança é de que certamente nossa sobrevivência como nação será possível, apenas e enquanto, tivermos a sabedoria de reequacionarmos nosso projeto de desenvolvimento em sintonia com os objetivos da Carta de 1988,onde a justiça social é o parâmetro supremo a nos obrigar a todos.

Não é impossível. E a alternativa nos levaria a repetir os mesmos erros pós 1945, com uma soberania política coartada e uma aliança econômica espoliativa. Mas, reconheçamos que a tarefa exige- ao contrário do que aconteceu na ordem internacional- a estrita observância da Lei Maior. Por governo e oposição.

A rejeição aos princípios fundamentais da Carta, o obstáculo a sua implementação não é programa partidário, mas desvio constitucional passível de sanção e nulidade.

E, em regime democrático , a decisão sobre a pertinência ou ilegalidade do ato cabe única e exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal. O resto é uma regressão anômala e, por melhor sejam suas intenções, essencialmente autoritária.

 

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Em TEMPO: Nestes momentos em que nossos olhos estão voltados para o Rio Grande do Sul, recomendo a releitura de “O TEMPO E O VENTO” de Érico Veríssimo. Obra maior de nossa literatura, que de quebra realça o papel de grandes mulheres como Ana Terra e Bebiana, dentre outras. Belo painel de nossa história.