ARTIGOS

O Drama da insolvência dos estados

Por RICARDO BRAND

Publicado em 17/05/2024 às 22:04

Alterado em 17/05/2024 às 22:04

No clássico de Shakespeare, "O Mercador de Veneza", acompanhamos o conflito entre o banqueiro Shylock e o mercador Antonio, relativo a um empréstimo do qual este é fiador, cuja letra vencida estipulava como multa um naco de quase meio quilo de carne do corpo do comerciante.

Sem condições de arcar com a obrigação, Antonio chega perto de ser executado (literalmente, neste caso), mas termina por ter seu couro poupado pela Corte veneziana.

O desfecho reflete a necessidade de se impor freios à cupidez financista. Do contrário, põe-se a perder uma regra elementar do crédito: a de que a integridade do devedor tem de ser preservada. Além de um preceito jurídico, trata-se também de um princípio de racionalidade econômica. Afinal, ganha mais, no longo prazo, o credor que não mata sua galinha dos ovos de ouro.

Por óbvio que isso soe, é algo que tem sido há várias décadas ignorado nas discussões financeiras e tributárias envolvendo a União e os demais entes da nossa federação.

Emblemática a esse respeito, a situação do Rio de Janeiro volta às manchetes por conta do recente questionamento judicial da dívida fluminense para com o governo federal. Na casa dos 13 bilhões nos anos 90, esta atinge hoje o montante de 191 bilhões, mesmo após o estado já haver desembolsado 160 bilhões para quitá-la.

Diversos fatores explicam a espiral de endividamento. Alguns, sem dúvida, de responsabilidade do próprio estado, como as renúncias de receita nem sempre justificadas. Mas a arena agora é a da relação sufocante com a União.

Para um governo como o atual, que tanto critica os altos juros do mercado, é irônico que siga se comportando como o mais usurário dos agentes financeiros nessa questão. Ainda mais tendo como Ministro da Fazenda Fernando Haddad, vocal opositor e bem sucedido renegociador da taxa cobrada aos municípios quando prefeito. Talvez esteja faltando um pouco de empatia de quem já esteve do outro lado do balcão.

Na raiz da querela, está o crescente desequilíbrio do federalismo fiscal brasileiro. Em todas as unidades das regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste, paga-se mais à União em impostos do que aquilo que é recebido de volta na forma de repasses aos respectivos governos estaduais e prefeituras. Isso, ao mesmo tempo em que o risco de insolvência das contas públicas se alastra pelo território nacional, com 23 dos 27 estados apresentando previsão de déficit em seus orçamentos de 2024, conforme estudo da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan).

Não é um problema novo. Já em 2002, o então procurador Luis Roberto Barroso assinalava a "impossibilidade dos Estados honrarem seu compromisso com a União sem sacrifício do mínimo indispensável ao seu regular funcionamento."

Presidente do Supremo Tribunal Federal, Barroso terá de revisitar esse debate. Que possa ser esta a vez em que, finalmente, o Rio será salvo da navalha do agiota.

 

Ricardo Brand. Auditor Fiscal e Representante da categoria no Conselho Superior de Fiscalização Tributária