ARTIGOS

Reflexões de um cavalo-galo

In memorian: João Cabral de Mello Neto

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 12/05/2024 às 09:59

Alterado em 12/05/2024 às 09:59

Minha fotografia em cima do telhado, pareço ter comovido muita gente, sem intenção, o telhado foi minha âncora ,meu porto, minha torre, buscava mesmo meus campos verdes, só via água barrenta, enlameada, carcaças estrebuchadas, dava arrepio na minha pele cor de caramelo, como me chamam na hora da montaria, não sou bicho de carga, em mim só monta quem deixo, passeio muito com os filhos do patrão, ganho assim meu quinhão de aveia, de milho, cruzo com minha égua, que daqui já não vejo, só água barrenta, chuva, fico quieto por medo de escorregar neste teto molhado, de longe pareço estátua equestre ,mas morro de medo do medonho tombo, quero viver, voltar a correr no meu círculo cercado de madeira branca, se cair nesta água mormacenta, corredeira como cobra traiçoeira ,dela não saio, fico aqui plantado e temo a noite onde não sei o que vejo e o vento se mistura com este cheiro de morte, conheço bem cheiro de morte, e o cheiro aqui é de muita morte, um cheiro que esta água barrenta traz mas não lava, e este silêncio no meio do dia, na hora da louvação, na hora da morte, talvez desta noite nem passe, durmo, escorrego, nem a cauda devo mexer , neste teto, os mosquitos me zumbem nos ouvidos numa sinfonia macabra e ninguém me vê, ouço barulhos de voos metálicos no céu de pássaros enormes que passam por mim e mãos que me acenam como se fosse uma estátua e não percebem sequer não posso levantar minha cabeça, meu corpo escorre teto abaixo neste rio das mortes, onde só cobras peçonhentas se atrevem, será que não sabem que posso morrer se me afobar, quero rever minha égua e a encontrar de novo num chamego gostoso, porque cansei desta vida de levar no lombo quem me chicoteia só pelo prazer de me ver sofrer, tenho sete anos e me dizem chego aos trinta, se não me quebrar uma perna nesta mania de me fazerem correr como se fosse cavalo de exibição, sou cavalo discreto, servidor e cumpridor e detesto desrespeitos, quero meu pão de cada dia por meu trabalho contratado e assim não me empino porque sou respeitador das leis, mas uma empinada minha só de leve, levaria um montador a quebrar a ossada ,tive um primo que fez isso, embora no dia seguinte tenha desaparecido do curral puxado pelo rabo por trator da plantação, sei dos meus limites e conheço minha força, quero respeito, só isso, não é pedir muito, ou será que não me enxergo como ouço dizer a torto e a direita, sei não, vida difícil de entender principalmente nestes tempos de valentias gratuitas, de repente pode surgir de trás ou de cima um matador a apontar uma carabina com luneta, me atirar no focinho entre os olhos e vou desta enfim e o matador vai a churrasco abraçado por todos, valentão dos grotões, como um Deus, por isso fico aqui quieto, como estátua, na esperança de que o humano mude, entenda que estamos todos no mesmo avião e que na hora da queda não importa se você está na primeira classe e eu no porão , vamos todos para o mesmo buraco, minha esperança é uma boa gente possa me ver neste perrengue, e fale para outra e esta alma boa fale para uma outra , esta outra fale para outra ainda e todas essas falem com muitas outras e que desta forma, como o galo da manhã, faça seu canto chegar a outro galo e que este galo retome o canto e o transmita a outro galo até que no raiar da manhã todos os galos com seus cantos de alerta e de sentinelas façam com que uma nova manhã surja neste país e os homens do bem me injetem um sedativo e eu acorde num Brasil melhor, pois ninguém é de ferro e esta maleita de homem mau, já passa dos limites, torna tudo um ódio só, num país cheio de fome e com muita terra para se viver em paz, sem medo de bicho fera, porque aqui o trabalho rende, o sol nasce para todos e o povo é de boa cepa, mãos calosas, coração aberto, esta praga que nos abate tem que ser erva daninha plantada de raiva. Não dá mais. Sei que tem muita gente torcendo para não dar certo, torcendo o cabresto para nos sufocar. Gente até de fora deste Brasil Grande. Uma praga.