ARTIGOS

O risco do cansaço cívico

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 25/04/2024 às 07:56

Alterado em 25/04/2024 às 07:56

Neste feriadão aproveitei para reler alguns textos de Celso Furtado. Não me surpreendi com a pertinência e a acuidade de um dos maiores pensadores a influenciar a visão de Brasil de minha geração. "A Formação Econômica do Brasil”, que li aos dezoito anos, me abriu a vocação de servidor do Estado brasileiro.

Chamo Celso Furtado de pensador e não de economista. Celso foi sobretudo um humanista no sentido amplo da palavra e a cada ano sua visão de Brasil ultrapassa os limites temporais em que atuou como membro do Executivo brasileiro. Na Economia e na Cultura.

A releitura dos textos me fez olhar com grande tristeza para os anos do período autoritário iniciado em 1964, quando a intolerância ao contraditório expulsou deste país intelectuais e políticos como Furtado e JK, diplomatas como Antonio Houaiss, homens que inegavelmente instilaram no pensamento político brasileiro a dimensão inegável de nosso país e de seu destino evidente de ser um dos maiores países democráticos a serviço da paz e do desenvolvimento econômico.

Na esteira desta nostalgia, me vieram à lembrança alguns momentos de exaltação cívica, alguns de que participei, outros que acompanhei à distância, todos porém sempre aguardados e bem-vindos por serem evidências de uma resistência à prepotência e à supressão dos direitos fundamentais do cidadão e do Estado Democrático de Direito.

A clareza com que Celso Furtado analisa as consequências do modelo econômico da ditadura para o futuro brasileiro - futuro que hoje é o nosso presente - me fez deplorar que a rigidez ideológica das autoridades de então nos tenha privado da contribuição de Celso Furtado, àquela altura já apontava as distorções a advir de um remendo indevidamente chamado de “milagre brasileiro”.

De melancolia em melancolia, não me surpreendeu igualmente o uso abusivo da palavra milagre no contexto da situação das contas públicas, da dívida externa e da inflação que marcou o fim do regime autoritário a nos deixar por muitos anos com a soberania política cortada.

E a palavra milagre parece soar como advertência para os tempos que correm, onde decididamente se incluiu a religião com se ideologia fosse, a colocar em risco um dos direitos mais privados do cidadão.
Sem procurar assinalar os diversos pontos para os quais a análise de Furtado merece reflexão contemporânea, assinalaria basicamente a questão da desigualdade social sobre a qual ele tece observações que poderiam ser extraídas dos livros mais contemporâneos.

A referência imediata é Piketti, cujos trabalhos sobre a desigualdade social vem sendo o maior contraponto ao neoliberalismo, raiz da maior transferência de recursos dos mais pobres aos mais ricos.
E aqui chego à razão de ter escolhido o pensamento de Furtado como pano de fundo para este artigo de hoje. A visão prospectiva com que nos brinda Furtado deveria nos alertar para os riscos que correremos se permanecermos nesta dicotomia, nessa incapacidade de perceber que a solução para os problemas econômicos e sociais do Brasil - mas não apenas dele - não se encontra em fórmulas de um passado que não deu certo e sim na compreensão de que os tempos de hoje exigem soluções solidárias.

Durante trinta anos, o neoliberalismo, e sua parceira globalização, procuraram esvaziar o desenvolvimento econômico de seu componente mais sensível, o desenvolvimento humano. Desde os anos 80, governos de países ocidentais acreditaram que apenas com a remoção das proteções ao emprego, aos sindicatos, das leis anticompetição se poderia chegar ao crescimento do "bolo", cuja hipotética divisão beneficiaria a todos.

O resultado da eliminação dos controles governamentais liberou o espírito do lucro a qualquer preço e levou a fenômenos políticos hoje estudados como anomalias em crescente expansão.
Obviamente, a maior preocupação ocorre com o trumpismo a se transformar num quase culto à regressão política de mistura com uma efervescência religiosa muito pouco cristã.

No Brasil, há quem se esqueça de que o neoliberalismo parece ser uma nova forma de ópio a anestesiar nosso civismo em prol de um Brasil finalmente liberto e definitivamente sintonizado com a justiça social que perseguimos desde sempre.

Mais do que nunca, o divisionismo político chega às raias do cinismo e do deboche a impor uma reflexão sobre o que queremos realmente fazer deste país. Somos até hoje possuidores de recursos naturais e minerais que nos permitem um salto tecnológico para um futuro de prosperidade. O atraso não é nossa herança. Nossos erros do passado são talvez parte essencial para neles não reincidir por ódio ou ignorância.

Enquanto tivermos nossa Constituição de 1988 como parâmetro civilizacional, enquanto tivermos o voto como manifestação de nossa soberania, enquanto aceitarmos o que é de Deus sem confundir com o que é de Cesar, não há nada que nos possa desviar de nosso destino de povo amante da paz, solidário com o futuro de nossos semelhantes sejam quais forem nossas diferenças de cor, sexo e religião.
A felicidade é uma construção coletiva.



XXXXX

 

EM TEMPO: A leitura de “História e Diplomacia Monetária” (Dialética Editora), do professor Maurício Metri, é indispensável para estudantes de relações internacionais e para os que se interessam pela mais do que atual batalha pela hegemonia de políticas monetárias e de crédito.

2 - Este artigo já estava escrito quando foi anunciada pelo próprio presidente Lula sua intenção de promover às margens da próxima Assembleia Geral das Nações Unidas uma reunião de presidentes em defesa da Democracia. A iniciativa é um serviço ao Ocidente. Movimento mais do que necessário nesta hora de tumultos em que vivemos. Ainda recentemente li que a Diplomacia brasileira era avessa aos países ocidentais. Pois é.

 

Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado