ARTIGOS

As lágrimas da ministra

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 24/03/2024 às 09:15

Alterado em 24/03/2024 às 09:15

Finalmente, um gesto político de ética e dignidade. Longe, muito longe, das cínicas, esfarrapadas e cafajestes mentiras de tantos políticos ao serem pilhados com as quatro patas na prata alheia, no Tesouro dito nacional.

Os pérfidos de caráter talvez digam que as lágrimas da ministra tenham sido uma confissão de fraqueza diante das tensões do gigantesco desafio de administrar o nosocômio nacional. Longe disso. Trata-se de uma revolta da alma diante da demoníaca demolição por ela herdada do Sistema Único de Saúde (SUS), talvez a maior arquitetura de proteção sanitária gratuita do mundo.

Nas lágrimas da ministra há revolta diante do trabalho solerte, mentiroso, assassino de fazer a população brasileira descrer das vacinas, por implantar nos cérebros robotizados e fanáticos o medo de levar os filhos a protegerem-se contra a paralisia infantil, a varíola, o sarampo e tantas outras mazelas.

Na digna revolta da ministra há a constatação de que o serviço público se transforma num covil de saqueadores do imposto arrecadado para impedir que crianças pobres deste país cheguem aos três anos de idade neurologicamente destruídas pelo déficit alimentar.

Diariamente entopem a mesa da ministra envelopes gordos de demandas e recomendações de partidos e patifes a ambicionar uma prebenda aqui um empreguinho ali, uma mordida inescrupulosa na carótida de uma cientista devotada à saúde de seu povo. Isso tudo no meio de uma epidemia de Dengue absolutamente inédita e feroz.

No Congresso Nacional a moeda de troca é a emenda parlamentar com sua cascata de subdivisões, sem o que não anda o projeto de lei ou a reestruturação hospitalar.

Um jogo de cartas marcadas, onde as manobras mafiosas são de fazer corar hienas do serviço gratuito de atendimento ao público seja no nascimento, na doença ou na morte.

Sem falar no tenebroso cipoal das regras internacionais, em especial a serviço das grandes empresas farmacêuticas a se refastelarem no monopólio virtual das patentes de medicamentos a tornar impossível uma política de compras governamentais realmente benéfica para a saúde pública.

Por mais que se saiba que a maior parte das pesquisas na área farmacêutica seja financiada por governos, associados ou não a empresas privadas, os preços para o consumidor final se tornam proibitivos até mesmo em países como os Estados Unidos da América.

A classe média americana pressiona as autoridades sanitárias e o próprio Congresso para intervirem num mercado injustamente chamado de livre. O presidente Biden em seu discurso sobre o Estado da União comprometeu-se em ampliar a assistência médica pública e a reduzir os preços dos medicamentos, caso seja reeleito.

Honestamente, não sei se no contexto das negociações em curso do G-20, o Brasil se aproximou dos Estados Unidos da América para influenciar o texto sobre saúde pública e acesso a medicamentos que deverá sair no comunicado final do Grupo, no final deste ano aqui no Brasil.

Não sou ingênuo a ponto de acreditar que se possa resolver o problema neste ano, mas suponho que alguma coisa se possa fazer para baratear o acesso aos medicamentos dito essenciais pela Organização Mundial da Saúde.

Conheço e aprecio as qualidades do embaixador Mauricio Lyrio, nosso sherpa no G-20, e tenho certeza de que ele certamente não hesitará em levantar com o sherpa americano a possibilidade de um “meeting of minds” nesta área sensível para os povos de nossos dois países. Aliás, o tema da saúde está estreitamente ligado à questão da pobreza, ponto essencial para o Brasil.

Poderia continuar a escrever sobre o tema da saúde nas relações internacionais, assunto com que tive grande intimidade desde os anos setenta do século passado, quando negociávamos a Revisão da Convenção de Paris - instrumento internacional que regulava, antes da OMC, a questão das patentes farmacêuticas. Perdemos a batalha, num golpe baixo ligado às calças jeans. Sem dúvida, um mirabolante, milionário e ardiloso golpe travestido de combate à contrafação.

Após tantos anos em que pagamos a média de 20 bilhões de dólares anuais a título de royalties, me parece chegada a hora de retomarmos os questionamentos de certas regras leoninas do comércio internacional neste campo. Já o fizemos antes, mas creio devamos fazer valer nossa condição de quarto mercado mundial de fármacos. Sem incluir o Mercosul.

É bom lembrar disso na hora em que se acusa Lula de ser “antiquado”, esquerdista ou retrógrado quando questiona as compras governamentais no Acordo Mercosul-União Europeia.

Aliás, é sempre bom recordar que os objetivos da política externa brasileira são suprapartidários e estão claramente descritos na Constituição de 1988.

As reações mais consequentes contra o acordo TRIPS - que regulamenta a propriedade intelectual na OMC - foram tomadas na gestão de José Serra no Ministério da Saúde e de Celso Amorim em nossa Delegação junto à OMC, em Genebra.

Um dos males que se incrustou no debate político brasileiro é a tentativa de rotular como de esquerda ou direita ações de política externa. O parâmetro inquestionável é o mandato constitucional a assinalar o interesse nacional a ser perseguido. Os brasileiros precisam se convencer que grande parte de nossas divergências já foi resolvida na Constituição de 1988.

Termino levantando minha taça num brinde à ministra, que não conheço pessoalmente, mas de quem sou admirador desde criancinha. Tem o apoio incondicional deste intrometido articulista.

XXXXX

EM TEMPO: Há um livro de John Le Carré - “O Jardineiro Fiel” - que muito recomendo aos interessados em conhecer um pouco mais os labirintos da produção de medicamentos. Imperdível. Assustador. Educativo.

Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado