ARTIGOS

O Sermão do Capitólio

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 10/03/2024 às 08:22

Alterado em 10/03/2024 às 08:22

Mais de um analista político afirma que a crise do sistema econômico-financeiro internacional, trazida e alimentada pela cartilha ideológica do neoliberalismo e sua irmã de leite globalização assimétrica, só teria saída possível através de uma regressão civilizacional ou de um salto progressista de natureza solidária e ecumênica.

A dificuldade principal reside na compreensão do que seja regressão e progressista. Na visão de Trump - e o cito aqui por óbvias razões de representar a liderança de uma corrente que não se deve ignorar nem minimizar - o “progressismo" infelizmente se apoia na crescente supressão das instituições democráticas e numa revitalização dos piores mecanismos de um capitalismo antropofágico.

Não é por perseguição política que Trump está condenado a pagar meio bilhão de dólares por decisão judicial em casos e litígios que desafinam o teclado da integridade moral, da honestidade comercial e da responsabilidade cívica.

Não hesito em classificar o projeto político de Trump como de natureza essencialmente “regressiva" pois nele recua-se a voluntarismos e autoritarismos que historicamente nos levaram às duas grandes guerras do século XX e ao monopólio dual, hoje um pouco mais ampliado, da capacidade de destruição nuclear da humanidade.

Não entro aqui no componente teocrático do projeto político de Trump, porque sinceramente não sei quem parasita quem: se Trump é o escorpião nas costas do sapo que atravessa o rio ou se a liturgia apocalíptica encontra em Trump sua inteligência artificial. Deixo este tema, importantíssimo, para futuras reflexões.

E o discurso de Biden no Capitólio, a que veio? Antes de mais nada, parabéns a Biden por ter mostrado que ainda tem o vigor jovem de um octogenário. Fiquei a me perguntar se Biden não teria tido uma avó materna, como a que tive a felicidade de ter, que antes de qualquer teste físico ou acadêmico a que me submetia na minha infância me sapecava uma colher de sopa da Emulsão de Scott com a desculpa de que o gosto azedo ajudava a memória. Biden estava nos trinques. Sapateou no palco como um Gene Kelly.

Mas, a pergunta é: a proposta de Biden é progressista? Aqui, há pelo menos dois referenciais: progressista em relação a Trump, certamente é e dispensa maiores explanações. Progressista em relação à crise que estamos todos a enfrentar são outros quinhentos.

Biden tem consciência da escorregadia conjuntura política em que vivemos todos no Ocidente, onde o mais grave é a guerra semântica sobre conceitos de extrema direita, extrema esquerda, liberdade religiosa e terrorismo cultural.

Há certamente uma algaravia de conceitos, seja por ignorância seja por malícia acolitadas por plataformas informacionais, muitas vezes comprometidas mais com versões do que com fatos.

Talvez, Biden tenha conscientemente preferido adotar uma linha de cautela explícita nos parágrafos finais de seu texto, quando insiste na “restauração“ de valores e projetos, que, sem dúvida, diante do trumpismo, é um movimento progressista claramente oposto ao projeto do "Make America Great Again", despindo-o de seus valores antiamericanos como a rejeição ao imigrante, o ódio racial e o autoritarismo neofascista contra as instituições democráticas.

Neste sentido, a América de Biden é a restauração da América "como líder do mundo”. Capaz de conviver com uma Rússia autocrática numa guerra-fria, que se resolveria, como se resolveu a primeira, pela magnitude da corrida tecnológica-armamentista. Capaz, igualmente, de competir com a China, desde que haja controle tecnológico da produção chinesa e, na medida do possível, contenção da expansão chinesa na África e na América Latina.

Nesta leitura que faço do discurso de Biden, vejo interessantíssimos pontos de contato entre o Brasil e os Estados Unidos, sobretudo na cooperação na taxação mais justa de megas-empresas como fonte de estímulo a acesso à saúde e à educação e pesquisa. Talvez, pudesse ser consenso do G-20, na próxima reunião de chefes de Estado no Brasil.

Por outro lado, é inevitável antecipar que nossas relações com os Estados Unidos da América serão sempre trabalhosas a exigir tato e argúcia, além de estrita observância dos princípios constitucionais inscritos em nossa Carta de 1988.

Mais do que nunca, precisamos ler e obedecer nossa Constituição.

O que até hoje parecemos não ter percebido é que, em termos de progressismo, ela talvez seja uma das melhores bússolas para navegarmos nesses mares afetados por tantos" el niño", vulcões subterrâneos, placas tectônicas, correntes quentes, degelo persistente e, sobretudo, muito sobretudo, infestados de piratas de olho de vidro e da perna de pau.

Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado